terça-feira, 19 de maio de 2009

sábado no bairro

Passei o último sábado no Jardim Arpoador, periferia da zona oeste de sampa, perto da Raposo Tavares. Lá conheci a história bonita de um cara que se alimenta de alimentar os outros. Ele ganha bem, poderia fazer como a maioria e deixar para trás a pobreza e as limitações que a periferia costuma impor. Mas escolheu o contrário. Continua lá e, à sua maneira, lidera uma pequena revolução. Daquelas coisas que não têm preço na vida. O texto abaixo saiu na CartaCapital edição 546, e por conta da minha preguiça e ignorância com botões, os itálicos não foram preservados (mas nome de filme é nome de filme, certo?)

O guerreiro Xirú

Orfão de pai, filho de faxineira, o mais velho de quatro irmãos, nascido no periférico Jardim São Jorge, aluno de escola pública. Negro.

Gerente Uniclass, proprietário de um Citroën C-3, frequentador assíduo do Espaço Unibanco de Cinema, empreendedor social. Negro.

Para contrariar ao menos meia dúzia de estatísticas e passar do primeiro para o segundo parágrafo, o paulistano Ricardo Rodrigues, de 32 anos, ralou. Foi bom aluno, ouviu o conselho da mãe e preferiu estudar a ficar “na noite com amigos”, pagou uma faculdade particular de administração com o salário de motoboy que revendia os tickets-alimentação, e começou a trabalhar em banco como estagiário de televendas do Sudameris. Um ano depois, era o melhor vendedor do Brasil. Foi efetivado, passou seis anos no Banco Real e está há seis meses no Unibanco, onde é gerente Uniclass, ou seja, atende os clientes top, privilegiados.

Ah, sim, Xirú (apelido de infância) também é volante no time de várzea Jardim Arpoador. Todos os domingos, religiosamente, comparece ao campinho para defender a quebrada com os camaradas. Não que seja ruim de bola, mas é pelo que faz aos sábados, também religiosamente, que ele está se tornando uma referência no bairro.

“Eu chego aqui para perguntar pra ele: o que você vai me dar?”, diz Leandro Novaes, de 27 anos, estudante de contabilidade. Ele é um dos cerca de 70 cadastrados na videoteca Olhar Marginal, que ocupa as tardes de sábado de Xirú há quase um ano. A ideia de oferecer “informação e cultura na periferia”, como diz o cartaz do lado de fora de um salão de cabeleireiro comunitário, onde funciona atualmente, nasceu da vontade de compartilhar seu acervo de DVDs. “O que vem pra nós na televisão é a sobra, o BBB, o resto. Então o bom está aqui, um filme cubano, um filme sobre a América Latina”, aponta, orgulhoso, para as quatro gôndolas repletas de DVDs (são quase 200 títulos).

“Aqui vejo coisas que não passam na tevê”, acrescenta Leandro. Ele e outros 25 frequentadores participaram de uma ida ao Espaço Unibanco para assistir ao épico Che, de Steven Soderbergh, como parte das comemorações do primeiro aniversário da videoteca. O passeio lotou uma Kombi e foi registrado para o que deve se transformar em um documentário, a figurar nas prateleiras em breve. O mentor da videoteca não cobra pelo empréstimo das fitas, cujo prazo de devolução é de largos sete dias, até o sábado seguinte. O empreendimento nada tem a ver com “lucro”, “ganhos” ou “rendimentos” – palavras que ele, o engravatado Ricardo Rodrigues, profere de segunda a sexta-feira para clientes com carteiras de investimento de até 500 mil reais. “Durante a semana eu trabalho para o capitalismo e, no sábado, faço o socialismo”, brinca Xirú, de camiseta, calça jeans e tênis.

Mas não se trata apenas de um leva-e-traz de filmes. Ele recomenda uma filmografia personalizada para cada cliente. Algo como um personal cinéfilo de esquerda. “Sou um socialista, em uma palavra: inconformado.” Em troca, quem chega com um DVD traz sempre uma opinião, uma crítica, um comentário. “Da hora. Dei muita risada com esse filme”, diz o estudante de nutrição Tiago Bueno, de 23 anos, sobre Estômago, de Marcos Jorge. Mal entrega a caixinha preta, sem capa ilustrada (xerocadas, elas permanecem nas estantes), e pega outro, Favela Rising, de Jeff Zimbalist e Matt Mochary. Tiago é o cliente mais assíduo da videoteca. Sua ficha tem três páginas e 56 filmes registrados.

É meio da tarde do sábado e o movimento é intenso. Sobre uma mesinha, um televisor exibe trechos do programa Ensaio com o sambista Roberto Ribeiro. Antes, passou um DVD do Quinteto em Branco e Preto. Depois, o documentário sobre Paulinho da Viola, Meu Tempo É Hoje. No outro canto, uma caixinha de madeira guarda as fichas cadastrais e, ao lado, uma enorme pasta com zíper abriga dezenas de DVDs. Xirú é o único que entende tudo nessa bagunça.

Bem ao lado, praticamente no mesmo ambiente, funciona o salão de cabeleireiro do Projeto Negro Alli. Também está bombando. A mão custa 7 reais, o pé, 10, e a escova, 18. O cheiro de laquê e do vapor dos secadores de cabelo às vezes invade a videoteca, mas ninguém se importa. A economista Maria Elena Caramigo, de 33 anos, é fã dali. O primeiro filme que levou foi Encontro com Milton Santos, de Sílvio Tendler. “Vir aqui mudou completamente minha forma de pensar a América Latina. E olhe que eu sou até privilegiada, estudei na Faap, li, mas só tinha acesso ao enlatado”, admite, com o filho Eduardo no colo. Da última vez, levou Quanto Vale ou É por Quilo?, de Sérgio Bianchi. Agora, quer algo sobre a Venezuela. “É difícil eu falar de revolução para os diretores do banco, que pensam em lucro. Mas, com os colegas de trabalho, estou fazendo o maior sucesso”, diz a funcionária do BicBanco.

A um novo frequentador Xirú começa de mansinho. “Primeiro eu indico o Ali (biografia do boxeador, com Will Smith), que é meio pipoca, mas, na história ele conhece o Malcolm X, então pode ver esse aqui, X (biografia do líder negro, com Denzel Washington), e quem sabe depois esse aqui”, diz e aponta para o documentário Panteras Negras. Nessa demonstração do personal cinéfilo alternativo, Xirú passou por dois dos três títulos mais procurados da videoteca: Panteras Negras e X. O outro é o documentário Ernesto Che Guevara.

Com uma cerimônia incomum nos centros ricos da cidade, mãe e filha chegam e passam os olhos pelas estantes. Após dez minutos, cada uma pegou uma fita. Maria das Graças Bezerra da Silva, a mãe, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Ela tem 50 anos, nasceu em Vitória de Santo Antão, Zona da Mata pernambucana, e “aos 7 ou 8 anos” baixou para São Paulo. “Li esse livro no ginásio, lembro que eram retirantes, e me lembro muito da cachorrinha, magrinha”, diz Maria, antes de silenciar em memórias. Então segue: “Digo para muita gente vir aqui, que é legal, que não precisa pagar. O neto da dona Maria (Xirú) fala que faz isso para dar informação para as pessoas”.

“É porque as pessoas assistem muita televisão”, completa Aryane, de 12 anos. Ela escolheu Kill Bill, de Quentin Tarantino, “gosto de filme de espiãs”, e diz que a família abandonou a locadora do bairro depois de conhecer a videoteca. O motivo é matemático: “Lá fazem promoção de cinco filmes por 10 reais, em dois dias. Não sei se é bom para eles ou para nós”. Xirú mal contém a satisfação ao ver Vidas Secas fazer sucesso. “É nossa história, é nossa gente.” Por outro lado, sofre com aqueles que não gostam (talvez não consigam) ver filmes legendados. O saldo, porém, é positivo. Ele mesmo explica onde está o retorno: “Aqui tenho filmes de vencidos e não de vencedores. As pessoas se sentem mais fortes ao conhecer a história de quem lutou por um mundo diferente desse. Conhecem Malcolm X e voltam mais fortes, com mais autoestima”.