quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

desejo e reparação

(Esperei quase dois anos para fazer esta reportagem. No começo, a idéia era boa, mas ainda era só uma idéia. Depois, as coisas já estavam acontecendo, mas faltava o momento certo para sugerir a pauta. Finalmente, em dezembro fui conhecer o pessoal da Rukha, a "ong dos playboys", e pude acompanhar uma reunião do grupo e também visitar os projetos, no meio do Capão Redondo. Acho uma notícia e tanto manos e playboys reconhecerem objetivos comuns e trabalharem juntos. E achei muito legal ir ver qual é. O texto acaba de sair, na edição 480 da CartaCapital)

Pontes em São Paulo
Por Phydia de Athayde

Todas as quartas-feiras pela manhã, um Ford EcoSport e, por vezes, uma Land Rover, atravessam os quase 20 quilômetros que separam o valorizado bairro do Itaim Bibi do pobre e violento Capão Redondo, na zona sul paulistana. Os veículos terminam o trajeto em frente a uma casa alugada, o chamado “Posto Avançado” no Capão. São quase 9 horas e está para começar a reunião semanal do Instituto Rukha, ou a “ONG dos playboys”, numa classificação provocativa, mas não de todo errada.

Enquanto coordenadores e educadores se acomodam na sala, Rosemeire Silva Santos chega no recinto e cumprimenta a todos. Ela é mãe de Lucas, de 11 anos, que até o ano passado podia ser encontrado pedindo dinheiro para Land Rovers e EcoSports nos semáforos do Itaim. “Eles chegaram até mim através dos meus filhos”, diz, referindo-se ao Projeto Virada (o primeiro do Rukha), que consiste em abordar e convencer não apenas a criança, mas a família, a deixar de esmolar em troca de freqüentar escola, projetos socioeducativos e cursos de formação. E de uma bolsa mensal de 350 reais – menos, é bom frisar, do que se ganha nos semáforos.

Meire topou. Tornou-se líder comunitária. “Eles oferecem não só a virada da criança, mas dos pais. Eu tinha muito ódio, era agressiva, e hoje me vejo capaz de perdoar, de mudar. Sei que posso até ser uma possível conselheira tutelar”, ambiciona.

Às 9h20, Marcelo Loureiro, empresário, criador da grife Mandi, pinta de surfista, olhos azuis, abre a reunião. Hoje está ausente outro empresário, o milionário e fundador do Rukha, Marcos de Moraes.

Yusaku Soussumi, psiquiatra e pesquisador em neuropsicanálise, também fundou a ONG. Assim como metade dos presentes, Soussumi atravessou a ponte para chegar ao Capão. Geograficamente, significa deixar o centro desenvolvido da cidade, vencer os poluídos rio Pinheiros ou Tietê, e adentrar a periferia. Mas também tem outros sentidos.

Ice Blue, integrante do grupo de rap mais influente do País, os Racionais MC’s, pinta de artista, negro, ex-favelado, também atravessou alguma ponte para estar ali, como colaborador do Rukha. “Já não me encaixo na favela, também não sou playboy, sou mais classe média. Mas é uma mudança de valores muito radical. Entro em conflito toda hora”, admite o rapper. Em dezembro, Blue dividiu o palco com Luciano Huck (aquele, da polêmica do Rolex roubado) no festival de música Power to the Peaceful, que teve renda revertida para os projetos do Rukha.

Na reunião, Loureiro diz ao grupo que a bilheteria não rendeu o esperado. “Mas, no final, os patrocinadores estavam ali, maravilhados, e aproveitei para pedir mais 20 mil reais de cada um”, diz. Com isso, o festival rendeu 155 mil reais.

Mas os ganhos parecem ainda maiores. Marcio Blatt Braun, morador de Santa Cecília (no centro de São Paulo), educador, fala de aproximações. “Os caras do Periferia Ativa até me chamaram pra assistir a um jogo de futebol com eles”, afirma, referindo-se aos integrantes do grupo de rap Negredo, que cuidam da Biblioteca Êxodus, outra parceira do Rukha. A biblioteca, no miolo da favela, foi criada pelo rapper Mano Brown e pelo escritor Ferréz (aquele, da polêmica do Rolex roubado).

“E eu? Tava conversando com um cara durante o show, mó gente boa, depois soube que ele era um puta ricão. Eu, que tinha uma visão de que todo boy é foda”, acrescenta, meio encabulado, meio rindo, Johnny William Borges, morador do Capão e também educador do Instituto.

Conhecer o Rukha é curioso por ser tão contraditório e tão real. A começar pelo nome, que em aramaico significa “sopro de vida”. Quem é da favela pronuncia “rúka”. Quem não é, “(u)rúrra” – iniciando com o som do erre entre vogais. Só ouvindo pra entender.

Ice Blue fala “rúka”. Marcelo Loureiro, “(u)rúrra”. Os dois se conheceram em 2003. Blue gostou quando Loureiro não tremeu diante do convite para conhecer “o lado de lá” da ponte. Loureiro gostou da chance de aproximar os dois lados. Para a Rukha surgir como ONG, Marcos de Moraes exigiu o que chama de “excelência na gestão do negócio”, como explica Luiz Alfaya, diretor-presidente do Instituto, ex-publicitário, olhos azuis que brilham quando fala do trabalho.

A reunião termina perto das 11h30. É hora de dar um giro pelos projetos parceiros. A começar pela Êxodus, por onde se chega depois de percorrer 20 metros de uma viela estreita e coberta, que mais parece um túnel grafitado. Lá, Alexandre Rocha, o DJ Alê, que também é produtor do Negredo, conta a história do local. Além dos livros, há cursos de vídeo, de dança de salão e de DJ. Ele, mano, fala da chegada dos playboys por ali.

“Pode parecer que a gente tem problema com o outro lado, mas a gente não tem. Só não queremos ser tratados como coitadinhos”, anuncia. “Quando eles chegaram, a gente deu corda pra ver qual era, se era oba-oba ou se era pra ajudar de verdade. Tem muita ONG que é fachada, lavagem de dinheiro, mas eles estão pegando os lugares que têm um trabalho sério”, acredita.

A poucas quadras dali fica a Escola Estadual Café Filho, cuja biblioteca foi reformada pelo Rukha (por meio da Parceiros da Educação, iniciativa de outro empresário, e “playboy”, Jair Ribeiro). Em frente à escola há uma pracinha simpática, com muros grafitados e brinquedos de madeira. “Aqui era um matagal, tinha até cachorro morto”, diz Alfaya. O Rukha quis reformá-la e descobriu que ONGs, subprefeitura e associações de bairro não se falavam. Pior, competiam. “Foi quase um ano de conversa até eles decidirem cuidar juntos da praça. Inclusive a subprefeitura, já que não há solução que não passe pelo Estado”, prega Alfaya.

Mais algum sobe-e-desce pelo bairro, que alterna casas de classe média baixa com vielas que levam a favelas propriamente ditas, como a que abriga o Capão Cidadão. Alfaya estaciona ao lado do campinho de futebol da ONG e, ao sair da EcoSport, é enquadrado por dois garotos:

– Você é da onde? Da Rúka?

– Sou. E você? É do Virada?

“Sou”, responde um orgulhoso Julio César, de 14 anos. “Eu também queria, mas não tem vaga pra mim”, reclama Diego Rocha, também de 14 anos. Os meninos cumprimentam Alfaya com o gestual da periferia: batem as palmas das mãos e, depois, batem as mãos fechadas em punho. E correm para o campinho.

O giro ainda inclui a Casa do Zezinho, instituição multidisciplinar que há mais de 14 anos educa crianças, os “zezinhos”, e orienta as famílias. Ao contrário dos outros parceiros, com trabalhos incipientes, a Casa anda sozinha há muito. Então o Rukha decidiu fazer um documentário para contar essa história. E atrair mais patrocinadores. “Eles atravessam a ponte”, enxerga Tia Dag, responsável pela Casa, e conclui, resumindo a onda desses playboys: “Eles levam daqui pra lá, de lá pra cá. É isso que tem de ser feito”.