quarta-feira, 28 de julho de 2010

Kassin


(originalmente publicado no Brasil Econômico, em 02/07/10)

Magnetismo para a boa música

O produtor musical Kassin, um dos mais férteis e plurais em atividade, está — além de outros mil lugares — por trás da trilha do espetáculo Ímã, do Grupo Corpo, que retorna a São Paulo 

texto Phydia de Athayde

É coisa boa com coisa boa. Aproveite que o espetáculo Ímã, do Grupo Corpo, volta a São Paulo para prestar atenção em Kassin, o artista e produtor musical que está por trás da trilha sonora do trabalho, composta por ele e seus parceiros no grupo +2, Domenico Lancelotti e Moreno Veloso. 


Mas, antes de seguirmos, não vá dançar e perder o Grupo Corpo. A companhia de dança comemora 35 anos de carreira este ano e reapresentará Íma (de 2009) e o espetáculo Lecuona. A dobradinha fica em cartaz de 11 a 15 de agosto, no Teatro Alfa, na capital paulista. Falta mais de um mês, mas compre
logo o ingresso, porque eles acabam muito rápido.

Quando os bailarinos do Corpo começarem a pulsar no palco, atraírem-se e repelirem-se ao sabor de uma
música meio bossa, meio moderna, um tanto indescritível, saiba que eles interpretam com músculos os
impulsos neurais da mente criativa de Kassin e seus amigos. Essa trilha foi um dos últimos trabalhos do
grupo +2, que está inativo no momento, mas só porque os seus integrantes estão bastante hiperativos.

Alexandre Kassin, este carioca de 36 anos, por pouco não despreza o jogo do Brasil contra o Chile. “Se eu
estivesse sozinho, não assistiria”, confessou, justificando a fama de certinho e trabalhador, numa conversa por telefone com o Outlook. Ao fundo, alguém tocava um orgãozinho, insistentemente. “Ah, é o Donatinho (filho de João Donato). Estamos fazendo o próximo disco da Vanessa da Mata”, diz ele, diretamente do lugar  onde mais gosta de estar: o estúdio. “É o meu grande prazer.”

Ao lado de Mario Caldato, Kassin produziu o premiado álbum Sim (2007), de Vanessa da Mata, eleito um
dos melhores daquele ano, e dela também o Multishow Ao Vivo (2009).

Este ano, já trabalhou com Marcelo Jeneci e Thais Gulin e, depois de Vanessa, vai dedicar-se a fazer trilhas. Como é de se esperar de um produtor talentoso, Kassin está em muitos lugares ao mesmo tempo. Nos créditos de álbuns de artistas como Adriana Calcanhotto, Jorge Mautner, Los Hermanos, Thalma
de Freitas e, além de Vanessa da Mata, Mallu Magalhães. Não só como produtor, mas frequentemente como arranjador e instrumentista também (ele toca quase tudo). O próprio explica as mudanças ocorridas na sua profissão. “Nos anos 70, o trabalho do produtor era mais segmentado, ele era pouco arranjador.
Hoje, como tem menos pessoas trabalhando num disco, e eu acabo tendo muitas funções: gravo, toco, arranjo, organizo o processo.”

Kassin começou a trabalhar com música nos anos 90, o que, em termos de tecnologia, é uma eternidade e meia para trás. “Peguei o fim da gravação em fita, até a digitalização total. Lembro que custava US$ 200 para gravar 15minutos. Era caro, ficava muito mais difícil brincar. Não se podia experimentar, coisa que eu amo”, diz, para então tentar definir o que faz um bom produtor. “É aquele que consegue chegar onde o
artista quer, onde ele está melhor. O trabalho tem que ter coerência do começo ao fim para aquele artista. Se, no final, o que eu tiver feito não for algo que o artista vá representar, não vale. Um disco não ganha vida por si só, mas pelo que o artista é.”

Da teoria à prática, diga-se, Kassin conhece bem o palco. Antes do +2, integrou a banda Acabou La Tequila. E é guitarrista da Orquestra Imperial. Tem feito shows apenas como Kassin, com Domenico, Donatinho e Alberto Continentino. “Minha música não é para multidões, é de difícil compreensão”,
diz, tranquilo quanto a isso.

Antes de se despedir, dá um recado bem humorado: “Por mais que digam isso, eu nunca produzi , do Caetano. Nem Marisa Monte”. Pior para eles.


quinta-feira, 22 de julho de 2010

Maria Alice Vergueiro ensaiando


(originalmente publicado no Brasil Econômico de 16/07/10)

Tapa na cara

Lutando contra o Parkinson na vida real, a grande Maria Alice Vergueiro, fast-musa de Tapa na Pantera, volta ao teatro e à provocação com As Três Velhas

texto Phydia de Athayde

O convite não dá margem à resistência. Desde os primeiros momentos dentro do pequeno galpão do Grupo Pândega, nos fundos de uma vila no Centro de São Paulo, o visitante depara-se com dois homens usando anáguas e camisolas brancas. É entrar ou entrar. Ou melhor, já se está dentro.

Em instantes começará o ensaio da peça As Três Velhas, de Alejandro Jodorowsky, que estreia dia 20 de agosto no Centro Cultural Banco do Brasil. Quase tudo pronto.

O homem à direita, em pé, olhos no nada e expressão de jogador de futebol durante o hino nacional, aproveita o silêncio para alongar o pescoço. Ergue o ombro, joga a cabeça para um lado, para o outro, feito um atleta. O batom vermelho é que, no caso, não cai tão bem. Tão logo cessa o
alongamento, volta a ser o perfeito homem-mulher-bizarro de antes. Este é Pascoal da Conceição terminando de entrar de vez em Graça, a sua personagem octogenária e decadente.

Graça é irmã gêmea de Melissa, que por enquanto não existe porque Luciano Chirolli, apesar da camisola e anágua brancas, ainda não está montado na personagem — na verdade, ele é que seria cavalgado por ela dali alguns minutos. Chirolli faz aquele brrrlllrrrr com que atores aquecem a voz, atrás de um biombo. Passa, então, pelos quatro convidados sentados em cadeiras simples e diz “só falta umchegar, tá?”.

Sentada numa cadeira de rodas, a mão esquerda um pouco trêmula, vestida de preto e com olhar desligado, está uma velha. É Maria Alice Vergueiro, irreconhecível, já totalmente dentro de Garga, a centenária criada de Graça e Melissa. Comum véu negro sobre a cabeça branca, eis a atriz dos 50 anos de teatro de vanguarda e, não, a vovó maconheira dos poucos minutos de
Tapa na Pantera, o fenômeno do YouTube que a tornou fast-musa de nossos tempos.

Um mímica do mezanino para o tablado, e alguém se levanta da plateia de 10 lugares e apaga a luz ambiente. Acende-se uma luz verde e... tocam os três sinais, senha mestra do teatro. Começou.

Já nas primeiras falas, “cadela”, “puta incestuosa” e “cu nojento”. Até o fim da próxima hora, Garga e as marquesas atravessarão uma noite de horrores falados, sonhados e vividos. Percorrerão toda a vastidão do subterrâneo humano. Incesto, estupro, aborto e nudez até o tabu maior, canibalismo. É tudo “uma grande fábula, para adultos”, explica e adverte Pascoal.

Neste ensaio, os atores estão a um palmo da diminuta plateia. Não carece HD para ver o suor brotar na testa. Dá para sentir o cheiro de catchup quando Melissa sangra. A performance de Chirolli é especialmente desgastante e, no fim, apesar de exausto, ele está de alma lavada. “A gente deixa tudo lá, por isso é tão bom”, aponta para o pequeno palco. Maria Alice continua na cadeira de rodas. O joelho vai mal. E ela tem Parkinson. “Vou pedir ao neurologista que me receite algo para a tremedeira interior. Quando vejo minha mão tremer, tremo por dentro”, diz. Mas está feliz, e muito, por voltar à cena. “Eu tinha que voltar à linha de frente. A Marta Góes (dramaturga) me disse para passar as minhas limitações para a personagem. Aí, eu transcendo.” Sem dúvida, ela está prestes a dar mais um tapa.

AS TRÊS VELHAS
20/8 A 30/10, NO CCBB-SP
R. ÁLVARES PENTEADO, 112
(11) 3113-3651

segunda-feira, 12 de julho de 2010

entrevista com a Bebel Gilberto


(originalmente publicada no Brasil Econômico de 09/07/10)


"Eu era muito mais Bebel Gilberto. Hoje, já virei Bebel"

texto Phydia de Athayde e Daniela Paiva

ABRE:

Ela é uma criança. Pequenininha, divertida, moleca de tudo. É também uma mulher com 44 bem vividos carnavais nas costas e que, finalmente, começa a navegar por águas mais tranquilas.

Se mantém até hoje o frescor e a inquietação da juventude, esta moça chamada Bebel Gilberto penou um certo tanto até conquistar os benefícios da maturidade._Também, filha de quem é — alguém pode dizer. E é mesmo.

Sem dúvida é uma bênção nascer da união de um gênio da grandeza de João Gilberto com Miúcha, cantora que além de ser Miúcha é irmã de Chico Buarque. Mas tanta nobreza artística e intelectual também cobra o seu preço. E Bebel pagou, todinho.

Ela é uma das crianças que aparecem no encarte do disco Os Saltimbancos (de 1977) no qual fez parte do coro, e viajou com a peça teatral homônima durante três anos.

Na infância, viveu por dois anos aos cuidados da avó, Maria Amélia Buarque de Hollanda, a matriarca da família a quem apelidou Memélia. Além de Miúcha, Bebel teve na tia, Marieta Severo, também uma mãe. Nas primas, muitas irmãs. Nos amigos da adolescência — entre eles, Cazuza — outros pais e outras mães.

O_excesso de liberdades, avalia, não a preparou bem para enfrentar os desvairados anos 80. Em meados dos 90, tratou de partir para Nova York, cidade onde nasceu, para curar a ressaca da década anterior e encontrar um rumo.

Achou sua bossa. Ela estava no palco, na composição, na voz macia e nos arranjos elegantes, com um toque muito moderno, que o produtor Suba imprimiu ao seu Tanto Tempo (de 2000). O álbum vendeu mais de um milhão de cópias e Bebel, que era Gilberto, começou a ser mais Bebel. E não é que depois dela vieram outra tantas querendo ser essa Bebel?

Nesses dez anos, mais coisas mudariam. Além de nunca mais um disco seu vender tanto, outras transformações iriam acontecer. Em 2005, ela conheceu um rapazinho, “uma coisa loura”, com quem dois anos depois estaria namorando. Didiê Cunha é seu marido e, para breve, será o pai de uma criança da mesma linhagem artisticamente privilegiada de Bebel, mas com uma mãe um tiquinho mais presente.

Na capa de seu último álbum, quarto da carreira, o delicioso All in One (2009), Bebel posou com em uma praia nos Estados Unidos. Em fevereiro deste ano, casou-se com Didiê bem perto do mar, em Trancoso, na Bahia.

Sei não. Algo indica que em breve ela estará passeando com um bebezinho pela orla do Rio de Janeiro. Bem Bebel.

ENTREVISTA:

Aos 44 anos, você passou por várias etapas até o sucesso internacional, e agora vemos muitas cantoras. Que tal ter aberto este caminho?

Dá uma certa responsabilidade (sorri). Tenho orgulho da Céu, estourando aí. Conheço a Cibelle desde o começo. Quando a vi na capa do (jornal) O Globo, com aquelas roupas incríveis, pensei, gente, que barato. E eu boto a responsabilidade de volta na Marisa (Monte). Mas acho que abri uma coisa, sem ser pretensiosa, de poder ser você mesma. Fico lisonjeada com isso.

Todas querem ser Bebel?

Aí já não sei. Acho que não. Não mesmo. Duvido que alguém queira ser eu. E, também, não quero ser ninguém (risos). Às vezes vou a um lugar e ouço um som meio parecido comigo... É muito engraçado, uma sensação meio maluca. Brinco: “Isso é meio Bebel”. Por um lado, acho bacana, estão tentando. E tem um som que é o Bebel estereotipado, bem algo misturado com Sei Não. Das cantoras que estão aí, gosto da Céu. É a única que ouço o disco todo. Quando a Vanessa (da Mata) começou, gostei muito do que ela fez.

Tem alguma outra que você destaque?

Teresa Cristina. É impossível você viver sem um dia escutar Teresa Cristina. A Mariana de Moraes, que canta um samba com uma voz de gato rasgado, tem ótimo bom gosto. A Thalma de Freitas. A Mariana Aydar. A Roberta Sá, que tem uma voz maravilhosa, não é o meu estilo, mas muito bonita. Tem muita gente boa.

Você vive em Nova York há muitos anos e conhece muita gente. Existe uma turminha

de brasileiros que se dão bem na música por lá, não?

Essa turma é o Mauro Refosco (toca com David Byrne), o Ilhan (do Nublu), eu, a Karina Zeviani, que canta com o Thievery Corporation, a Sabina Sciubba, do Brazilian Girls. Ah, e tem a Katia B, que está fazendo um trabalho super legal. É a única que fala escancaradamente que sua influência sou eu. São pessoas que se encontram. E o Otto! Quando ele chega, as portas do aeroporto já se abrem (risos).

Agora você está mais lá ou aqui?

Tenho estado bastante aqui. Ano passado vim para o aniversário da minha avó (Maria Amélia Buarque de Hollanda, que morreu em maio deste ano), depois a gente casou (Bebel e o engenheiro de som Didiê Cunha, em fevereiro deste ano) em Trancoso. Depois, vim em março. Estou me dedicando a ficar aqui. Estou realmente pensando no Brasil.

E como é dedicar-se ao Brasil?

Complicado, viu? São 17 anos lá. Onde vou morar? Não sei se quero morar aqui. Mas quero não ter de ficar em hotel quando venho para cá. Depois de casada dá vontade de ter filho, dá mais saudades da família.

Você afirmou, há alguns anos, que gostaria de ter um apartamento em Nova York e um no Rio. Conseguiu?

Não, um absurdo (debocha). Vou muito ao Rio, tenho sorte, tenho muitos amigos, faço trocas (de casa). Nunca fico com a minha mãe, nunca fico com o meu pai.

Por quê?

Porque não dá. Os dois são... (não completa a frase). Não tem lugar, não tem como. Mas normal, também.

Respeitando a privacidade de vocês, queria que você falasse do seu pai. De que forma ele é importante na sua vida hoje?

Meu pai não é presente na minha vida. (Silêncio) É uma pessoa muito querida, meu pai, mas não é presente.

Há muito tempo?

Há... sete anos?

Você prefere deixar como está ou pretende tentar mudar isso?

Não. Fui até Nova York para ver o show dele, mas ele não foi (em junho deste ano, João Gilberto desistiu de uma apresentação no Carnegie Hall). Vamos mudar de assunto. É isso.

Você tem vindo muito a São Paulo. Já se apaixonou pela cidade?

Já. Hoje me sinto muito melhor quando chego (de fora) direto em São Paulo. Tenho amigos muito legais aqui. Meus amigos do Rio meio que se espalharam. E muita gente de Nova York tem proximidade com São Paulo.

No segundo semestre você vai gravar um DVD no Brasil, o primeiro da sua carreira. Ele vem depois deste seu último disco, All in One (de 2009), gravado na Jamaica e no Brasil, e finalizado em Nova York. Como foi esse processo?

Foi um disco apaixonado, porém sofrido. Feito em várias etapas. Geralmente um produtor lidera o processo, o (Carlinhos) Brown tentou ser isso, mas não deu jeito. Ficamos eu e o Didiê. O (produtor) Mark Ronson apareceu na última hora. Eu estava atrás dele, ele era namorado de uma grande amiga, até que saímos para jantar, falei de uma música e ele disse que tinha de ter The Real Thing (música de Stevie Wonder). Na segunda-feira seguinte a gente já estava gravando. The Real Thing foi gravada de formas que jamais tinha feito. Ao vivo, com o microfone quase distorcido, como ele gosta, no tom que ele escolheu para mim, que eu acho muito alto (risos). Gravamos num dia de calor, no Brooklin, todos com a maior vontade de tocar, super profissionais. (Suspira) Realmente esse disco foi uma força enorme, teve tanta coisa, inclusive o retardamento da assinatura com a (gravadora) Verve, por motivo de força maior, que todo mundo já sabe qual é (o rompimento com a produtora Paula Lavigne, noticiado na imprensa).

A Lavigne fez falta no produto final?

Não fez falta nenhuma. Ela queria fazer uma coisa, eu queria outra. Isso retardou o lançamento. Em vez do disco sair em julho, só saiu em outubro, e isso faz uma diferença enorme. A gente ainda não conseguiu fazer uma turnê no Brasil. Estamos tendo dificuldade com o apoio. Quero trazer minha banda nova-iorquina, fazer um show de qualidade, com um cachê honesto. A Verve tem lugares em que funciona super bem. Em outros, não tão bem. Aliás, nos Estados Unidos nada anda bem.

Fica mais interessante voltar?

Com certeza. É complicado esse momento que a gente está vivendo (com efeitos da crise). Sempre morei lá, mesmo com o Bush de vizinho (risos), mas agora não dá mais. Antes, pelo menos o Bush estava pagando as contas. Agora está tudo realmente confuso.

Falando de outro momento um tanto confuso: como você vê essa mudança na forma como se consome música?

As pessoas ainda estão tentando entender como é que se vai fazer para ser bem-sucedido cantando para 2 mil pessoas, mas não vendendo um milhão de discos. Essa que é a história. Como é que se vai pagar as contas, ficar bem sem ter de se superexpor? Sempre tive horror a isso. Não combina comigo e, também, nunca tiveram tanto interesse nessa coisa boba da vida do artista, que alimenta os paparazzi.

Não querer se expor é um ensinamento de família?

É algo que naturalmente vai vindo, com minha música, com meu jeito de ser. Já sou tão aberta que não tem muito o que possa alimentar esse tipo de coisa (fofoca). Não falo do meu pai, não falo do meu tio. Tento evitar falar da minha família porque todos gostam de ser preservados. Isso vem como uma coisa natural.

O peso do seu sobrenome durou até quando na sua carreira?

Esse peso só saiu no Tanto Tempo (de 2000), só quando consegui virar Bebel Gilberto. Eu era muito mais Bebel Gilberto do que hoje em dia. Hoje, já virei Bebel. Não tem mais nada que eu possa fazer de tão surpreendente. Já sou uma cantora realizada, bem-sucedida. Isso passa, é coisa de crise dos 20, 30 anos.

O que você gosta no palco?

Entro meio que em transe quando estou no palco. Tenho um barato que talvez tenha desenvolvido nos anos em que em vez de ter aula de piano eu fiquei no Saltimbancos (ela integrou o coro infantil do espetáculo por três anos), que foi uma escola. No palco me baixa um santo. Quando componho é diferente. O santo às vezes vem, mas não com tanta frequência. Quando estou compondo, as ideias aparecem em situações que não têm nada a ver, às vezes no banho (risos).

Por que você demorou até os 34 anos para lançar o primeiro disco?

Não parei de trabalhar desde que cheguei a Nova York. Comecei a fazer shows direto, um atrás do outro. Fui morar um ano em Londres, depois fiquei seis meses em Amsterdã… Quando dei por mim, estava pronta para gravar. Conheci o Suba (aclamado produtor, morto em 1999) em 1998 e gravamos o Tanto Tempo. Foi super saudável. Se tivesse feito antes, não teria sido tão legal. Estava buscando e conhecendo pessoas.

Quase como outra escola, então?

Foi. De novo, a escola que eu não tive (Bebel estudou apenas até a 6ª série). Porque naquela época depois do EP (Bebel Gilberto, de 1986), teve a porra-louquice dos anos 80, depois o Caju (Cazuza) morreu, tanta coisa aconteceu... E a música, também, não estava ajudando. Com todo respeito, hoje a gente ouve e acha incrível, mas o próprio EP não deu certo na época. Talvez pela minha falta de gana.

Você viveu intensamente a loucura toda dos 80, inclusive das drogas. Isso foi bom ou você talvez tenha perdido um pouco de tempo?

Se arrepender a gente sempre se arrepende. Procuro não falar sobre isso. (Hesita) Tenho fama de louca mesmo (debocha), então não adianta (risos). É o seguinte. Com a loucura você perde tempo, perde saúde e perde um pouco da garra. Ao mesmo tempo, ela te ajuda muito a criar, a escrever, a se encontrar. Toda a Hollywood tomou ácido nos anos 70. Talvez seja importante tomar ácido para se encontrar, entende? As drogas são perigosas tanto quanto o álcool, o cigarro, o remédio para dormir. O (ator) Robert Downey Jr. fala que maconha é a droga mais perigosa que tem, te tira a ambição. Ele está totalmente certo. Com um baseado você pode perder um dia inteiro, um ano inteiro, 20 anos.

Nessa época você era muito ligada ao Cazuza...

Mas não juntaria as drogas ao Cazuza. Os anos 80 eram assim.

Qual foi o maior ensinamento dele para a sua carreira de artista?

Compor. Ele viu que eu tinha uma facilidade muito grande para compor, fazer melodia com todas as letras que ele escrevia. Eu brincava: “Me dá qualquer coisa que faço uma música agora”. E adorava, só fazia isso. Ele me incentivou a um talento, inclusive com letra. No (verso) Eu preciso

dizer que te amo/ te ganhar ou perder sem engano, dei uma sugestão naquela finalização.

Então reproduziram fielmente essa passagem no Por Toda Minha Vida (biografia produzida pela Globo)?

Sim. Participei, assisti. Chorei sem parar, foi superbacana. Lá as pessoas contam de verdade as histórias. Mas o filme (Cazuza — O Tempo Não Pára, de 2004), nunca vi. Sei que aquela não é a história.

(Didiê sai da sala para atender um telefonema.) Bom, então vamos falar de algo bem atual na sua vida. Que tal estar recém-casada? Como é o Didiê?

(Derretida) Ele é um santo, um fofo. Quando o conheci, fiquei impressionada com toda aquela coisa loura, aqueles cachos. Ele tinha 23 anos, era 2005 e nada aconteceu. No fim da noite eu dei o meu telefone de Londres, o de Nova York, o do Rio... (risos) Mas a gente nunca conseguiu se encontrar, os dois sempre trabalhando muito. Em 2007, fui fazer um show na Via Funchal (em São Paulo), e nos encontramos em uma festa. Eu estava com o Otto, e ele dizia (imita o sotaque): “Ói, o galego gosta de você. Vou largar você com o galego, não quero nem ver!”. E fiquei com o galego. Desde então, nunca mais nos largamos.

De quem foi a ideia de casar na igreja?

Ele me pediu em casamento, ajoelhou e tudo. No Soho (em Nova York), me comprou um anel. Tudo que eu queria.

Quantos anos ele tem?

Tem 27, tenho 18 anos a mais que ele. Nunca tinha namorado alguém tão mais novo, foi incrível.

Vocês querem filhos?

A gente está tentando providenciar. Estou com vontade e tentando da forma mais natural possível. Não tenho nada contra a fertilização. Se precisar, faço. Sempre quis ser mãe e, com ele, vou me arrepender muito se não tiver filhos.

O que você mais gosta no casamento?

Vou te falar, compromisso é muito legal. Fazemos planos para o resto da vida. “O que a gente vai fazer daqui a dez anos? Vamos morar aonde?” Isso existe, é super legal. Tem que ter um motivo pelo qual inventaram o casamento, entendeu? (risos) E existe. A partir do momento em que se troca alianças, se assina um papel, pode ter certeza que as coisas mudam. E para melhor.

Na infância, você viveu um período com sua avó (Maria Amélia), você tem uma tia (Marieta Severo) que foi meio mãe... Prestes a ter um filho, que mãe você gostaria de ser?

Uma mãe bem presente. Não vou culpar ninguém, mas a chatice dos anos 80 também foi falta de preparação. Um reflexo ainda da porra-louquice dos anos 70, dos pais e dos envolvidos. Eu era muito jogada, estudei em doze escolas diferentes, nunca fiz uma aula de piano, nunca fiz uma aula de canto, de francês, de italiano, todas as línguas que eu não falo. É importantíssimo que as crianças e os adolescentes estudem.

Nunca levou bronca por nota baixa?

Nunca quiseram nem olhar (minhas notas). Nisso, realmente, gostaria de fazer o contrário. E continuo com a ideia de fazer uma escola para crianças com talentos especiais para a arte.

Como foi a sua formação política, nessa família de artistas e comunistas?

Nunca tentei me meter em política porque só faltava essa. Eu, depois de velha, virar entendedora de política. Mas, uma vez que se vai crescendo, as coisas vão entrando melhor na sua cabeça, principalmente em relação ao crescimento do Brasil. O país tem que saber crescer. Ele vem crescendo muito rapidamente e temos que tomar cuidado para que o Brasil não vire um lugar impossível de se viver. Digo isso por causa de violência, de ter muita gente, de ficar muito caro, de ter muito tudo. As cidades estão impraticáveis.

Você tem cidadania americana e brasileira. Vai votar nessas eleições?

Claro. Devo votar na Dilma. Não é que eu vá votar...

Para fechar, a Bossa Nova. Quer queira ou não, você é meio que herdeira dela, não?

Por que fizeram isso comigo? (risos) Estou cansada disso. Flerto com a Bossa Nova, e flerto mesmo, mas não sou cantora de Bossa Nova. Se realmente quisesse cantar Bossa Nova, seria muito mais bem sucedida. Mas não quero. Não me sinto bem, nunca vou fazer. Por que não deixam a Bossa Nova dormir um pouco? Deixem a Bossa Nova em paz, pelo amor de Deus.

Num certo período ela foi a música do Brasil, depois teve a Tropicália, outros movimentos. Qual desses você gostaria de ter vivido e curtido?

(Pensativa) A Bossa Nova (risos)! Pela poesia, pela beleza.


MAKING OF:
Bebel Gilberto estava no Hotel Unique, em São Paulo, para um pocket show para convidados, quando nos cedeu esta entrevista. Muito falante e alto astral, Bebel abusou de uma qualidade tão nobre e rara que ainda provoca um certo espanto: a de rir de si mesma. Não comprou o apartamento que sonhava? Óóóó. Casou-se com um moço 18 anos mais novo? Óóóó. Tem fama de louca? Óóóó. Ela fala sobre tudo isso sem nenhum grilo, para ficarmos num vocabulário 80's, e cria com muita naturalidade o clima "papo de amigas". Em seguida, Bebel manteve a boa vibe ao posar na janela do quarto para as fotos, e ainda trocou de roupa para ir à cobertura brincar de chutar a água na beira da piscina.