sexta-feira, 30 de abril de 2010

Só quem é sabe o que é

youtube.com/watch?v=uQwXT5yAKT0

90 minutos de horror

(texto originalmente publicado no jornal Brasil Econômico desta sexta-feira, 30/04/10, ou seja, escrito na quinta logo depois do jogo de ida...)


É o que me reserva a quarta-feira que vem. Tenho certeza. E começou cedo, já nesta quarta, e bem antes do primeiro jogo, quando eu e outros 50 mil torcedores cadastrados no programa de fidelidade do Corinthians passamos horas diante do computador na esperança ridícula de conseguir comprar ingresso para a partida de volta contra o Flamengo. O site não comportava o fluxo e ficou fora do ar (que surpresa todos os cadastrados quererem exercer seu direito de compra, não é mesmo?). Meu_suplício começou às 14h. Só consegui efetivar a compra às 20h06. Sacanagem.

Essa tarde perdida diz muito sobre o que aconteceria mais à noite — e sobre o que vai acontecer na quarta que vem. A minha cara de tacho para explicar que “veja bem, o programa Fiel Torcedor é até bom, só não está funcionando neste momento crucial para o qual foi criado” serve perfeitamente para falar do que se viu em campo, no Maracanã, depois do dilúvio do primeiro tempo.

Veja bem, corintiano, o time é até bom, só não está funcionando neste momento crucial para o qual foi criado. Dá pra ver daí o sorriso amarelo? Que é que eu vou dizer lá em casa se o meu time, que desde junho do ano passado está “guardando” o que tinha de bom pra usar agora, joga com um a mais e não chuta a gol decentemente nem uma vez sequer?

O jogo avançava e dava a impressão de que o gol do Timão estava “amadurecendo”, como se diz ridiculamente no futebol. Mas nunca aconteceu. Tomamos um, podíamos ter tomado mais. Eu assistia e ia afundando no sofá com o peso da certeza, como disse, que vêm aí mais 90 minutos de horror. Ou alguém acha que o Ronaldo vá reencontrar o fino da bola? Ou que o Mano terá coragem de barrá-lo? Ou que vá colocar o time na frente, para agredir de verdade? Mal posso esperar para me ver, argh!, torcendo para o Souza.

E, pior, o farei do Tobogã (longe do campo e atrás do gol, no Pacaembu). O farei num falso “caldeirão”, uma caçarola à paulista, onde cabem só 35 mil torcedores, onde é proibido entrar com bandeiras (“questão de segurança”, sussurra a SS), onde só é permitido... sorrir amarelo. Quero muito estar errada mas, ah, que saudades do Timão da Série B!


terça-feira, 27 de abril de 2010

entrevista com Teresa Cristina


(originalmente publicada no suplemento de sábado do jornal Brasil Econômico 24/04/10)

ABERTURA:

"Por que não é todo mundo de uma cor só? Eu tinha essa revolta envergonhada"

texto Phydia de Athayde

Teresa Cristina está com 42 anos e parece uma debutante. Despontara como “novidade” já um pouco tardiamente, na boemia da Lapa, no Rio de Janeiro, aos 30. Foi melhor assim. Este é o nome de seu novo show, novo DVD e, principalmente, de uma nova diretriz que a cantora tem seguido. Não que a vida não estivesse boa. Só ficou mais.

Ela nasceu em Bonsucesso e cresceu na Vila da Penha, num Rio de Janeiro bem distante do Pão de Açúcar e dos luxos da Zona Sul. Aos 25, casou-se com o músico Bernardo Dantas e foi morar no Leblon. Só então percebeu que havia algo de muito seu no subúrbio, onde conheceu Surica, Argemiro, Monarco e toda a Velha Guarda da Portela.

Teresa já foi metaleira e diz que sua vida se divide em AC/DC, “antes de Candeia e depois de Candeia”. Ela conhece o mestre da infância, do toca-discos do pai, mas só adulta deu ouvidos à exaltação da negritude. “Descobri que eu podia ser bonita. Achei meu lugar no mundo.”

Daí para se ver num palco, foi aquela sucessão de eventos favoráveis que só acontecem quando se está no rumo certo. Em 98, acompanhada do grupo Semente (Bernardo, Ricardo Cotrim, Pedro Miranda e João Callado) fez o bar de mesmo nome se tornar uma referência no “renascimento” da então decadente Lapa. Timidésima, Teresa cantava para cada vez mais gente. Foi para o Carioca da Gema, para o Centro Cultural Carioca e, em 2003, para o estúdio gravar um CD cantando Paulinho da Viola, de quem ouviu elogios.

No ano seguinte veio A Vida me Fez Assim, com composições próprias. (“Sou compositora cantora”, define-se.) Em 2005, o primeiro DVD ao vivo e, dois anos depois, o disco Delicada, no qual interpretou Gema, de Caetano, e ganhou mais um fã. “Ela é uma das várias encarnações do samba. Muito delicada e muito bonita”, disse ele ao chamá-la ao palco em 2008. Ela entrou mole, quase se desmontando de emoção.

Agora, depois de ser mãe e descobrir-se (mais) poderosa, Teresa já não canta tão fechada em si, deixa-se sorrir, gargalhar, e até brinca com um boá de penas no palco. Parte dos músicos do Semente ainda a acompanham, mas chegou gente nova na banda e no palco: Marisa Monte, Lenine, Caetano, Seu Jorge, Arlindo Cruz. Bem Melhor Assim.

ENTREVISTA:

Quais as suas impressões dessa nova fase no palco?
São as melhores possíveis. Inclusive o cansaço que estou sentindo é um cansaço que queria sentir. Queria voltar a trabalhar depois de passar 2008 e 2009 em torno da gravidez e da minha filha (Lorena, de 1 ano). Desde 2009 estou idealizando esse projeto e, quando vi, estava com 10 a 12 músicas novas... E achei legal ter a ideia de começar pelo final, com o DVD.

Como isso aconteceu?
Fiquei tanto tempo parada que senti necessidade de começar mais adiante. É um risco, mas nesse caso é muito bom poder arriscar e ver o resultado. Foi tudo bem afinado, bem feito. Fiz questão de gravar o DVD para ter uma outra impressão minha. Tenho um DVD, gravado em 2005, em que ainda estava muito tímida, sentindo muito aquele momento, preocupada com tudo. Completamente insegura. O clima de ansiedade transparecia na fisionomia. Nas minhas relações pessoais eu não sou tímida. Gosto de conversar, de me divertir, conto piada, gosto de futebol, estou sempre brincando. Fiquei incomodada ao me olhar no palco e não ver alegria.

Você transmitia ansiedade, mas queria transmitir outra coisa?
Sim. E essa outra coisa virou um conceito para esse trabalho, Melhor Assim, que é poder apostar no novo, com repertório autoral, com parceiros novos — gente que admiro bastante — e que me mostraram outra seara para percorrer.

O que você está trazendo para o palco agora?
A minha verdade. Há uma diferença grande entre o que a gente acha que é e o que as pessoas acham que a gente seja. Vi que teria de mudar do zero a parte que vai de mim para o outro. Não internamente. O problema é a casca, que é difícil. O Seu Jorge me falou que a pessoa que canta para os outros é um personagem que a gente tem de ter a sabedoria de criar. O Lenine também falou: “Somos atores de um personagem só, a gente, e a gente tem que fazer isso bem”. Então não é só importante fazer um bom CD. O palco tem que ser tão importante quanto.

Você costumava ficar desconcertada com gritos e provocações da plateia...
Trabalhei muito isso de cantar de olhos fechados. Eu me blindava. Agora (no show em São Paulo, no Sesc Pinheiros), aconteceu uma coisa muito engraçada. Tive uma crise de riso no meio do show. Antes seria uma crise de choro, agora foi uma crise de riso. Estou evoluindo, até brinquei com isso na hora.

Uma crise de riso?
Na hora do Beijo Sem, o Trambique (percussionista) entrou errado. Virei, olhei. Ele é muito engraçado, e fez uma cara tão engraçada que não consegui mais cantar (risos). Parei a música e recomeçamos. Em outra situação eu ficaria muito nervosa. Considero uma conquista pós maternidade a capacidade de rir de mim. Eu não me divertia comigo. Desde que chegou a Lorena, ela é tão importante que tudo em volta foi diminuindo de tamanho. Saí da minha casa, voltei a morar com a família... Ver a família em volta da Lorena é tão forte, sabe? Sinto que chegar no palco e cantar é fichinha. Quando ela tinha 12 dias teve uma conjuntivite horrorosa, fiquei no hospital 5 dias. Foi muito pesado, me vi numa situação de um problema real, cabeludo. Agora, se eu vou cantar bem uma música, isso não é um problema, é algo que eu posso resolver. Esse tipo de decisão interna é uma novidade para mim.

Você tem 42 anos, a Lorena está com 1. Como foi engravidar aos 40?
Não decidi engravidar. Antes, pensava que me casaria aos 25 e teria 3 filhos. Mas foi indo. Aos 30 comecei a compor, a cantar de madrugada e não podia ter filho ali. Depois, tinha me separado do Bernardo (Dantas, do grupo Semente, com quem se casou aos 25) e estava namorando mas o momento não acontecia. E não aconteceu. A Lorena é filha de um ex-namorado (Gerome). Descobri que estava grávida quando o namoro já tinha terminado. Eu morava em Copacabana e revolvi voltar para o casulo. Cresci numa casa cheia de gente e não queria a Lorena sozinha num apartamento com uma babá.

Como foi sua infância?
Fui muito moleque, vivia na rua. Não brincava de boneca com as minhas irmãs. Jogava bola, “pique bandeira”, “queimado”... Isso está acabando no Rio.

Você era pobre?
Minha família é classe média baixa, bem baixa, mas nunca passamos dificuldade. Tinha fartura de alimentação, tinha roupa. E sempre estudei em lugares públicos, até a universidade (cursou Letras na UERJ). Mas eu passei da fase de jogar bola na rua com os meninos para a fase de querer ser perua muito rápido. Aí, não dava para comprar roupa toda hora, ter o que minhas amigas tinham.

Você começou a trabalhar cedo, não?
Com 13 anos. Dou valor ao dinheiro desde cedo. Queria crescer logo. Aprendi a fazer unha com a minha tia e virei manicure. Fazia a mão de todas as senhoras da minha rua, a maioria portuguesas. Talvez por isso eu seja vascaína (risos). Fiquei amiga delas. As minhas amizades sempre são com pessoas mais velhas. Gosto de ouvir as histórias que elas contam.

Você é muito querida pela turma da Velha Guarda da Portela, com quem tem relações. Como isso aconteceu?
Vê só como é a vida. Nasci na Vila da Penha, com 25 anos me casei e fui morar no Leblon. Do Leblon, comecei a ir pra longe (Madureira, no subúrbio). Tem artistas que vão morar no exterior, descobrem a música brasileira e voltam. Meu exterior foi a Zona Sul (risos). E eles são pessoas que eu adoro. Conheci a Velha Guarda nessa pesquisa do Candeia, quando estava me descobrindo artista, compositora.

Que pesquisa é essa?
Meu pai (feirante) ouvia muito um disco do Candeia, o Samba de Roda, enquanto ensacava limão na varanda. Eu e as minhas irmãs adorávamos disco music e a gente ficava debochando do meu pai por ele ser nordestino, baiano... Para mim, aquilo era dele e não tinha a ver comigo. Qual não foi minha surpresa quando, aos 25 anos, um amigo me apresenta um CD dizendo que era maravilhoso, incrível. O disco do meu pai. Botei para tocar, cantei tudo, me deu um arrepio. Aquela voz era maravilhosa, esse cara era sinistro. Me envergonhei dos deboches e quis dizer para o meu pai que estava errada aquele tempo todo.

Você já queria ser cantora?
Não. Era casada com o Bernardo, que era do grupo Acorda Bamba. Estava em contato com a música mas sem nenhum compromisso. Depois do CD, eu e a Renata, que era cantora e minha única amiga da Zona Sul, ficamos enlouquecidas com o Candeia. Fomos procurar o João Batista, biógrafo dele, que me apresentou o Wilson Moreira, a Velha Guarda, o Monarco, todo mundo. Eu ia na casa da Surica encontrar o Casquinha, o Argemiro, o Seu Jair... Isso mudou a vida de nós duas, porque o João Batista acabou se casando com a Renata depois.

E como você percebeu que seria cantora?
Queria fazer com a Renata um show em homenagem ao Candeia. Em nenhum momento me dei conta de que não era cantora. Como ela tinha um trabalho mais pop, fiquei só eu cantando. Mas nem pensei nisso, estava tão alucinada que passou batido. O Bernardo deu a maior força e começamos a ensaiar muito. Ele chamou o pessoal do Cordão do Boitatá (bloco carnavalesco formado por instrumentistas), Ricardo Cotrim, Pedro Miranda, João Callado. A senha era: “Gosta de Candeia? Então pode vir”.

Assim nasceu o grupo Semente.
Sim. E esse show para o Candeia nunca aconteceu. Mas nisso o Monarco me chamava pra dar canja, fui conhecendo as pessoas... Aí o Guaracy (da Portela) me indicou para uma casa nova que ele ia abrir. Era 98. Quando vi, estava cantando. (Pensativa) Teve um rabichinho antes: fiz uma música pro Acorda Bamba no final de 97. Peguei uma melodia num ponto de umbanda, tirei a letra e botei outra. Eles gravaram e adoraram. Com isso fui chamada para o projeto A Cria, que revelava novos talentos e, como achei vergonhoso me apresentar como compositora de uma música só, fiz outras três além dessa primeira, O Candeeiro.

Você falou de umbanda. Como a religiosidade está presente na sua vida?
Me tornei umbandista por causa da música, daquela bateção de tambor, das mulheres cantando. Aquilo me entorpece. Meu pai é umbandista mas de uma outra umbanda. Minha mãe não tem religião definida e... (toca o telefone. É a mãe dela). Entrei num centro com 15 anos e nunca mais saí. Frequentei um tempo, depois me chamaram para ser médium. Quando comecei a cantar me liberaram, mas vou sempre (em Benfica, Zona Norte do Rio de Janeiro). Na umbanda aprendi que poderia compor sem instrumento (bate palmas). É onde reponho minhas energias, faço minha análise, tudo. Ás vezes nem peço nada, só vou pela festa. Gosto de todo o conceito. O que mais assimilo é a duplicidade do orixá com a natureza. O orixá é a natureza. Por isso fico muito abalada quando sinto que a natureza ultimamente só falta falar.

O que ela está querendo dizer?
Chega. Para. Não dá mais. O homem é muito prepotente, uma prepotência que não tem limite. Vai para Marte e provoca explosões para ver se tem água. Vai fazer o quê em Marte? É como essa história de Belo Monte. Está me doendo muito, está difícil aceitar. Assisti Avatar. Vários críticos, inteligentíssimos, disseram que é um filme de mulherzinha, uma fantasia exagerada. Para mim foi o contrário. Quando derrubam aquela árvore sagrada eu entro num grau de tristeza e não paro de chorar até o final do filme. Me reconheço ali, nos devotos, na louvação daquele lugar sagrado. É muito cafona alguém ser tão inteligente a ponto de se afastar da religiosidade. Não digo da religião, que foi criada pelo homem, mas da religiosidade, que está dentro da gente.

Belo Monte te pega por quê?
Primeiro porque é muito bizarro o assunto só ganhar mais espaço no jornal depois que o James Cameron veio para o Brasil. Mas me abala porque há uma ilha no Alto Xingu que os índios consideram sagrada. Eles precisam desse lugar. O rio que querem represar também é sagrado. Os índios só querem o rio, o peixe, a terra: o que está ali. Tudo bem que o Brasil precisa de energia, mas será que essa usina precisa ser num lugar tão sagrado? O Lula já deixou claro que não se importa. É um descaso tão grande... Vão matar essas pessoas. Vai ser um massacre.

Você tem algum ativismo político, identifica-se com algum dos candidatos à Presidência?
Fui petista muito tempo, militante. A única pessoa em quem sei votar é no Lula. Mas o PT acabou. Quem eu identificava no partido, gente como o Gabeira ou o Chico Alencar, não está mais lá. Hoje sou como um polvo: tenho milhões de pés atrás com o PT. Acredito na essência do Lula, na história dele. Mas quando vejo as frases que ele destina ao Sarney e ao Collor, isso me metralha. Metralha a pessoa que fui. Não vejo a essência que guardo comigo do PT na Dilma. Sei que Belo Monte é a menina dos olhos dela, e por isso não sei o que vai acontecer. Posso anular meu voto. Está bem difícil. Este é um ano complicadíssimo. Não é à toa que tem Copa do Mundo e eleição juntos. É para aparecerem assuntos importantes, como esse de Belo Monte, em cima da hora.

Queria te perguntar algo que, num outro ângulo, também tem a ver com consciência política. Ser negra e ser mulher alguma vez foi um problema?
Tenho problema desde a infância. O Candeia tinha um discurso de exaltação da raça negra e eu não acreditava naquilo porque ia para o colégio e era chamada de nomes horrorosos. Lembro de chegar em casa, chorar muito e questionar: por quê tem preto no mundo? Por que não é todo mundo de uma cor só? Era uma revolta tão envergonhada... Porque existem dois lados. Um é ser vítima do racismo. Outro é a reação. A reação a uma atitude racista nunca é um revide. Ela é envergonhada, tem uma desesperança. É uma situação muito esquisita. Eu não falava para a minha mãe que o garoto me chamou de macaca. Tinha vergonha.

Em que fase da vida isso mudou?
Quando redescobri o Candeia. Era para eu ter ouvido o conselho dele muito mais nova. Quando encontrei aquilo me senti mais bonita, corajosa (se emociona). Uma beleza além da vaidade. Descobri que poderia ser bonita. Eu não tinha isso claro (chora). Não cresci revoltada, mas era um assunto que sempre sublimei. Até que, mais velha, passei de novo por situações... (não completa a frase). Quando estava casada com o Pedrinho (Pedro Miranda, então músico do Semente), ele teve uma crise renal e o médico que o atendeu no hospital tinha nojo de mim, me tratava como se eu fosse a empregada e não a esposa dele. Tentei avisar o Pedrinho que o cara estava me maltratando, me ofendendo, e ele não acreditou. Talvez porque estivesse sofrendo demais com a dor dele.

Ele era branco ou negro?
O cara? Branco. O Pedrinho também. Passei o dia no hospital e ia cantar à noite (no Carioca da Gema). Chorei o caminho todo. Era uma sensação que eu não tinha há muito tempo. Pensei: “Meu Deus, a gente está sozinho nessa história. Vai acabar o mundo e é preto de um lado, branco do outro”. Quando estou perto de alguém com a pele mais clara, vou matizando. Quando estou perto de alguém com a pele mais escura, pego a tinta. Aconteceu outra vez em Tenerife (ilha pertencente à Espanha e bem perto da África), depois de um show em 2006. Fui a um restaurante com os percussionistas do Semente (Pretinho da Serrinha e Mestre Trambique), negros. Estava vazio e disseram que não tinha mesa. Nós sentamos. O dono veio e nos tratou com nojo, praticamente nos expulsou. Levantamos. Saímos de lá olhando pro chão (voz embargada). Os três. A gente não se olhava. Foi um limite de humilhação que achei que não ia mais passar. É um tipo de humilhação tão antinatural que não tem nem reação.

Não dá para xingar de volta à mesma altura.
Não. Fiquei vendo o jogador do Atlético Paranaense (o zagueiro Manoel), que foi xingado pelo Danilo, do Palmeiras. Ele disse: “Agora que estou assimilando melhor”. É porque na hora a gente fica sem saber o que fazer. Não tem reação porque a reação seria quase uma tentativa de assassinato. Você quer matar a pessoa. Se eu pudesse, esganava aquele homem, sabe? Por isso a entrada do Candeia na minha vida foi uma coisa divina. Além de me colocar no meu devido lugar, aumentou a minha perspectiva, a minha esperança de vida. Virei outra pessoa, me tornei cantora. Minha infância tinha sido discoteca. Minha adolescência, heavy metal, adorava Van Hallen, Iron Maiden. E de repente me descobri num mundo totalmente diferente. Como a Velha Guarda. São pessoas talentosas, celebridades legítimas da música que têm um outro jeito de ser, de viver, de lidar com o fã, com a música. Eles vivem em outro mundo. Um mundo muito melhor do que esse.

Futebol. Vamos falar de Copa do Mundo. Quem você quer ver na seleção?
Sinceramente? Queria ver, jogando bem, o Adriano, o Ronaldinho Gaúcho, o Robinho, o Pato. Mas jogando bem. E queria ver o time do Santos. Sou vascaína, aqui em São Paulo tenho um link com o Palmeiras, mas sou muito doente com futebol. Gosto de ver um bom jogo. O Santos é como um Playstation de carne humana. É como o Messi. Não vejo o Barcelona jogar, vejo o Messi jogar. E eu vejo tudo. Tanto os jogos do Vasco, alguns difíceis de ver, como também o filé mignon. Mordo a carne dura, mas gosto da carne macia. Vejo futebol espanhol, que é o fino. A Espanha é uma séria candidata a campeã do mundo. O Brasil tem que montar um time que ganhe da Espanha e da Argentina, só isso. E tem outra coisa. Quando o Brasil entra em campo, existe uma estrela. O Ibrahimovic, que joga muito, é doente com o Ronaldo (o Gordo). O Cristiano Ronaldo agora coloca na camisa dele só “Ronaldo”. Isso é uma conquista. Quem será o Ronaldo dessa vez? Tem que ter um, tem que ter essa estrela. Teve o Romário, o Ronaldo. Agora tem quem? Não sei! Está feio... E vem esse papo do Dunga, já cortando esperança antes? Estou achando bem esquisito.

Para a gente terminar, queria que você falasse da vida de artista hoje em dia. Você foi independente muito tempo e agora está em uma grande gravadora. O que está funcionando?
As coisas estão mudando muito rápido. É uma incógnita o que vai acontecer com a gravadora. O artista precisa da gravadora e nós não estamos duelando para ver quem vai vender a minha música. Artista e gravadora talvez possam ter uma relação muito mais próxima do que já tiveram antes. Para a gravadora, enxergo esse caminho, tanto que várias já ganham no faturamento do artista. E o artista precisa de um suporte para produzir, para tudo. Fiz um DVD ótimo, estou tendo a chance de divulgar meu trabalho. A gravadora é uma aliada e tem que estar a favor do artista.

E o fã que baixa a sua música, está ajudando?
Está ajudando a tornar meu nome conhecido. Esse fã não compra disco. Quem baixa tudo não compra. Até conheço quem gosta de baixar muita música e de repente se encanta com um artista, compra tudo dele, divulga, vai ao show. Não tenho medo que baixem. É mais uma possibilidade da mensagem na garrafa chegar ao destinatário (risos).

MAKING OF:

Foi a primeira vez que uma entrevistada chorou tão sofridamente na minha frente. Primeiro, de saudades da filhinha Lorena, que balbuciou qualquer coisa no telefone para a mãe — os quatro dias em São Paulo foram a mais longa separação entre as duas até então. Um choro bonito, arrematado com um sorriso e um suspiro, para então voltarmos à conversa. O outro, os outros choros, foram de uma coisa sem nome nem tamanho. De tristeza por uma injustiça tão grande que não há o que se possa fazer para revidar. Nem amenizar. Muito menos esquecer. À noite a dor de ser vítima de racismo ainda estava em mim, e foi minha vez de chorar, sozinha. Que droga é essa de mundo em que vivemos? Além de intensa, a conversa foi também muito gostosa. Teresa, ela mesma sabe, fala pelos cotovelos. Eu a conhecia de espiá-la pela janela uma vez na Lapa, quando tentei, sem sucesso, entrar no Carioca da Gema explodindo de gente. O lugar para se estar naquela noite era ali, em frente ao palco de Teresa, comungando dessa “tal melodia encharcada de sorriso e pranto” chamada samba. Ela cantava de olhos fechados, travava quando alguém gritava que era linda. Parece que um dia teve medo de ser depositária de tudo aquilo. Mas passou.