segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Ao público o que é (e deveria se manter) público

Notícias da pracinha. Daquela pracinha que um dia foi pública, um espaço para todos, e que hoje , por vontade de poucos, está vetada para alguns. Daniel Santini, repórter do site G1, traz uma boa nova para esta segunda-feira:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL159289-5605,00.html
:)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

cartolagem.com.br

Semana passada eu acompanhei, bem de perto (do saguão do prédio, vejam só) uma reunião do Clube dos Treze, que vem a ser o grupo dos 20 clubes mais poderosos do futebol brasileiro. Cartolagem da pura, com tudo o que tem direito. A reportagem saiu na CartaCapital 467, de 24 de outubro, e está no site da revista, neste link:
http://www.cartacapital.com.br/edicoes/467/o-clube-dos-cinco
Pra quem conhece e pra quem quer saber um pouquinho de como funciona o mundo dos senhores que tomam conta do futebol, acho que é um bom retrato...

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tom Zé impagável


(hehe... Estou gostando de republicar neste modesto domínio internético as reportagens que mais gostei de fazer. Essa abaixo é de uma história impagável. Saiu na CartaCapital em 22 de junho de 2005)



NÃO É O QUE PARECE





A crônica de como se fez uma das capas de disco mais premiadas da história da MPB: Todos os Olhos, de Tom Zé


Procura-se um motel. Na São Paulo de 1972 isso não é lá tão fácil de encontrar. O jeito é pegar a rodovia Raposo Tavares e afastar-se alguns quilômetros da cidade para estacionar o Fuscão 1500 bordô ao lado de caminhões que descansam sob a placa "Retiro Rodoviário". O rapaz tem 22 anos, é cabeludo, usa faixa na cabeça e calça boca-de-sino. A moça tem vinte e poucos, é bonita, loira de cabelos compridos, tem os olhos claros, pinta de hippie e, assim como ele, é fã da Tropicália. Acessórios trazidos: uma máquina fotográfica alemã Praktika sem flash, quatro filmes Kodacolor ASA 100, dois abajures com lâmpadas de 100 W, fortíssimas, e uma caixa de... Bolinhas de gude?


Esses são os elementos usados na composição da foto da capa de Todos os Olhos, álbum do tropicalista baiano Tom Zé, lançado em 1973.
Tempo de ditadura. Toda a produção cultural, letras, músicas e arte-final do LP passam por censores antes de ir às lojas. Apesar da noite no "Retiro Rodoviário" não ser a única necessária para conseguir a foto da capa do disco, um ano depois dela Todos os Olhos vem ao mundo.

Os censores não atinaram para o que seria aquele fundo róseo com uma gema ao centro. Ainda bem. Tom Zé, o artista tropicalista, sabia que a circunferência no centro da capa era uma bolinha de gude. A repousar sobre uma parte verdadeiramente íntima do corpo humano, aquela mais abaixo do final das costas.

A idéia - de assombrosa afronta à censura - foi do poeta vanguardista Décio Pignatari, grande amigo de Tom Zé. Não eram tempos de brincar com a sorte. E toda a equipe de criação do álbum guardou muito bem o segredo.

Por ironia, logo após Todos os Olhos, Tom Zé caiu em
um ostracismo e quase encerrou sua carreira. Em 1990, o americano David Byrne, ao pesquisar world music, descobriu o baiano. Produziu, então, o CD The Best of Tom Zé: Massive Hits e lançou-o nos EUA. Seria o início da retomada artística de Tom Zé, em franca atividade e produção até hoje. No encarte desse CD, torna-se pública a explicação do que está na capa de Todos os Olhos.

A transgressão vira troféu. Tom Zé torna-se cult. E o olho, róseo, pode enfim ser entendido como tal. E é uma das capas mais premiadas da música brasileira. Em 2001, quase 200 personalidades da música elegeram-na, na Folha de S.Paulo, a segunda melhor capa da MPB de todos os tempos, atrás apenas do primeiro disco dos Secos & Molhados, também de 1973.

O sutil e vitorioso acinte à ditadura ganha, naturalmente, a condição de capítulo fundamental na história da Tropicália - citado até em uma reportagem especial do jornal inglês The Guardian, em 2003.

E a história seria essa. Seria. Não fosse a revelação sobre o que, de fato, aconteceu naquela noite no "Retiro Rodoviário". O suficiente para que se afirme: o olho de Todos os Olhos não é o que parece.

O protagonista do "Retiro" era Reinaldo Moraes. Ele trabalhava como assistente de estúdio na agência de publicidade E=mc2, que tinha como sócio Décio Pignatari, já um grande nome da poesia concretista. O chefe encomenda-lhe a foto. E tudo fica por conta do assistente. Inclusive providenciar a modelo.

"Queria muito participar desse jogo de afronta, queria muito executar uma idéia do Décio Pignatari, de quem eu era fã", diz Reinaldo, 33 anos depois, já grisalho e não mais o "boy hippie marxista", como se definia. Hoje, é escritor de inspiração beatnik, autor do desbocado Tanto Faz (Azougue Editorial), entre outros.

Aos 22 anos, e diante de tamanha missão, Reinaldo pensa em Vera (nome fictício), uma namorada bissexta, para modelo. Aproveitando um clima de reconciliação, lança um "sabe o Tom Zé?", para introduzir o assunto.

No exato instante, o próprio Tom Zé, nascido e criado em Irará, sertão da Bahia, agonizava com a simples idéia de que se pedisse uma coisa dessas a uma moça:

-- Fiquei apavorado quando o Pignatari me falou que tinham encontrado a modelo. E ele retrucou: "Como é que você quer traseiro sem modelo?".

Vera, fã dos tropicalistas e de seu ripongo namorado Reinaldo, aceita o convite. E lá se vão, Vera e Reinaldo, de Fusca até o "Retiro Rodoviário".

A sessão de fotos. No quartinho mal-arrumado do motel, Vera, empolgada, deita-se de costas na lateral da cama. No chão, as bolinhas de gude. Reinaldo posiciona os abajures na diagonal, de modo que a luz incida diretamente sobre o alvo. A lente é uma de 50 mm colocada no avesso para fazer a função de macro, e fica a apenas 20 centímetros do corpo da garota, já quase de cabeça para baixo.

Começam os problemas técnicos. A bolinha não pára. Cai, rola costas abaixo. Tentam-se novas posições. E mais outras. Nada da bolinha estacionar. Reinaldo descreve o desconforto:

-- Ela ficou constrangida, quis parar, mas eu estava obstinado. Continuamos tentando. Foi bem complicado...

A bizarra cena transformou-se em mal-estar. Quando beirava o insuportável, uma das bolinhas parou quieta. Reinaldo descarregou cliques. Consumiu todos os filmes. Testou velocidades, posições da luz, enfim. Fez-se de tudo, menos sexo. Deixaram para trás um quarto cheio de bolinhas pelo chão, sem coragem de se olhar nos olhos.

No dia seguinte, Reinaldo leva o resultado para a apreciação na agência:

-- Foi uma atitude poética. Como foto, algumas ficaram ótimas. Mas, mesmo nas melhores, era evidente do que se tratava.

Décio e Marcão, o diretor de arte da agência, ficam desolados. Décio, então, pede nova tentativa ao assistente. E lá vai Reinaldo falar de novo com Vera sobre Tropicalismo... Desta vez, nada de motel. Vão à casa de uma amiga. E, antes que repetissem a luta contra a obviedade fisiológica, uma nova idéia.

Vera tem a boca grossa. Lábios cheios de carne bem rósea. Vale tentar. Ela topa. Prefere. Senta-se no chão com a cabeça jogada na cama e faz biquinho. Uma bolinha é colocada e dali não sai. Os lábios contraídos formam frisos que em muito se parecem com o que devem parecer. Uma única série de cliques basta para, finalmente, realizar a idéia de Pignatari.

Aquele não era tempo de Photoshops, e a imagem é impressa sem retoques. Uma boca se fazendo passar por seu extremo oposto. Simples assim. Nos créditos do LP (reproduzidos em sua reedição em CD) constam: direção de arte de Marcão, fotografia de Reinaldo Moraes.

Vera não quis ver as fotos. Deixou pra lá. Depois de mais outras idas e vindas, também deixou Reinaldo pra lá. Ele soube que ela mora no interior de São Paulo, é dona de uma pensão e não se casou.

Já o autor da idéia, Décio Pignatari, recusa-se a comentar o fato. Interrompeu um telefonema, que atendeu desprevenido, ao ouvir as palavras Todos os Olhos:

-- Olha aqui! Eu já falei muito desse assunto e não tenho mais nada pra dizer sobre isso, viu?

Desligou, solenemente, na cara. Procurado outras oito vezes em uma semana, mandou dizer pela secretária que não fala sobre isso.

Já Tom Zé ouve atenciosamente a verdadeira história da capa de disco mais importante de sua carreira. E cai numa gostosa gargalhada:

-- Hahaha! Então me enganaram esse tempo todo! F.d.p., me enganaram! Hahaha! ...E que alívio! A moça não precisa mais ter vergonha. E pode se congratular de ter sido personagem de uma rebeldia.

Ainda sob o choque da notícia, pede a capa à esposa, Neusa. Em silêncio, põe o vinil em frente aos olhos, analisa-o como se fosse a primeira vez, e matuta:

-- ...É. Agora que você falou, dá pra viajar. Mas a gente não duvidava não... Pode ser uma boca mesmo, hehehe... Pode ser que seja mesmo, hahaha... E até ontem isso aí era oficialmente outra coisa.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

eita

...tem alguma coisa esquisita nesse blog. por alguma razão, ele não atende a todos os meus comandos para colocar parágrafo e pular linhas (exemplos no post abaixo). Daí que fica uma coisa meio desestruturada, sem eu querer. Eita.

cães e lobos


(o texto abaixo foi publicado na CartaCapital em 29 de agosto desse ano, edição 459. Acho legal reproduzir aqui para dar uma nova chance dessa história circular. E pra dividir com mais gente esse jeito diferente de ver relações tão simples, e complexas, como a que existe entre cães e donos)


A encantadora de cães




Twister, Thunder, Maria, Max e Kika são os clientes do dia. Twister é um boxer que domina o quintal de casa. Quando os donos ousam invadir seu território, pula, baba, empurra, faz o diabo. O pastor de Shetland Thunder é o rei do apartamento. Dá chilique, morde e late quando a dona ousa ir ao banheiro ou tentar sair de casa sem ele. Maria, uma vira-lata, só faz o que quer, morde o bumbum da dona, pula, e ainda ganha mil carinhos.

São cachorros muito amados, sem dúvida. Mas quem manda em quem? Essa é uma das perguntas que os donos, os verdadeiros clientes de Karin Stefanie, precisam responder. Karin é cinóloga comportamentalista. Significa que entende tudo de cachorro e, por extensão, de donos de cachorro. Karin reverte as situações descritas acima, e mesmo outras mais graves como cães que se autoflagelam ou são agressivos, com um diferencial surpreendente: nunca bate nos animais, nunca os repreende. Eles obedecem por convicção. Mas tal milagre só acontece quando fica claro quem manda no pedaço.

“Você só domina o cachorro se falar a língua dele. Cães ainda acham que são lobos, por isso é preciso mostrar quem é o líder da matilha”, explica Karin, paulistana de pai austríaco e mãe baronesa de Ibirocahy, que rejeitou a vida de “rainhazinha” para se dedicar à paixão pelos animais. Ruiva, cabelos ondulados e compridos, altíssima, 1,90 metro, ela se dobra toda e estabelece sintonia imediata com qualquer cachorro. É uma líder nata de matilha, digamos assim. E ganha a vida ensinando donos de cães a voltarem a ser donos.

TWISTER

No quintal do boxer Twister, a aula é com Henrique e Gabriela, irmãos em idade escolar. Uma primeira sessão, mais longa, com a família toda, aconteceu há uma semana. A lição número 1 do dia é entrar no quintal sem olhar nos olhos do cachorro. Em linguagem canina, evitar contato visual imediato significa superioridade. É quase impossível no começo, mas as crianças já conseguem. Twister fica louco, pula e late, como se dissesse: “Como assim, não estão me vendo?”

A orientação é afastá-lo com as mãos e ignorá-lo até que se acalme. Funciona.
Na implantação do método, Karin usa petiscos caninos (biscoitos ou “bifinhos”) como ferramenta de persuasão. O cão só ganha se tiver o comportamento correto. Se errar, é ignorado. A alternância entre indiferença e prêmio dá resultado. Sem gritos, sem violência. Twister passa a obedecer. Anda junto, dá a pata, deita... A cada acerto, um biscoito. A cada erro, a indiferença e uma nova chance mais tarde. Twister é malandro, às vezes dá a pata sem ninguém ter pedido. Não ganha petisco.

“Um bom líder é paciente, não precisa se impor por meio de violência. Um bom líder não duvida do próprio poder, não se afirma pelo medo. Um bom líder é o que não perde a cabeça quando todos perdem.” Não, não é auto-ajuda, é apenas Karin traduzindo o óbvio. E vai além: “O cão até relaxa quando percebe que não precisa cuidar de tudo. Ninguém quer ser líder. Alguém quer ser síndico? O animal aceita muito melhor uma mudança de comportamento. Transformar o dono é bem mais difícil”.

THUNDER
Duas horas depois, Karin está no apartamento de Thunder, quer dizer, da psicóloga Marisa Nasralla. “Pode colocar aí que ele é uma gracinha”, diz a dona. Até uma semana atrás, Thunder dormia na cama de Marisa, que mora sozinha. Perdeu o posto. “Ele foi muito mimado. Eram 24 horas por dia de atenção só para ele. Ele chora e late quando tenho de ler. Acho que se não desse tanta importância, ele não latiria tanto”, percebe a psicóloga.
Ao chegar, Karin não olha Thunder nos olhos. Ouve o relato dos avanços e problemas da última semana e passa orientações a Marisa. Sentada no sofá, a dona muitas vezes desvia o olhar para o cão, que percebe e faz de tudo para desconcentrá-la. Quando Thunder não está mais pedindo atenção, Karin olha para ele e o chama. Hipnotizado, vem na hora e recebe afagos. “O problema não é mimar o cachorro, é a hora do mimo. Cachorro não precisa de dó. Não existe dó na natureza”, ensina.

Karin adestra cães há 25 anos. Já trabalhou com os métodos mais comuns, que usam violência e repressão, mas intuitivamente deixou-os de lado. Há dois anos conheceu o trabalho da inglesa Jan Fennell, autora de The Dog Listener, livro inédito no Brasil, e encontrou-se. O que fazia por bom senso agora tinha uma didática descrita.

Na prática, consiste em mostrar a Thunder que Marisa é quem manda durante o passeio até a padaria. Marisa é orientada a não deixar Thunder, nunca, mais adiantado que ela na calçada. “O líder é que vai na frente”, professa Karin. Marisa encurta a guia, Thunder obedece e fica ao lado dela. Pára de puxar a dona para cima e para baixo, como sempre fez.

MARIA
Depois, é hora de visitar Maria, a vira-lata filhotona que dobra as donas feito papel de seda. Dessa vez, Karin dá instruções também para a faxineira. Antônia Francisco Borges, a Tonha, tem de aprender a não entrar em casa e imediatamente se abaixar para cumprimentar Maria. “Mas é que ela é uma graça”, derrama-se a faxineira. Sentadas no sofá, sem dar atenção à cadela, Karin passa orientações a Tonha e à professora Vera Helena Gamberini. A dona admite a dificuldade de ignorar Maria: “Ela percebe tudo, mesmo se eu olhar de rabo de olho”.
Quando Maria finalmente desiste de chamar a atenção, Karin a chama, faz carinho e tenta colocar a guia. A vira-lata agita-se toda, morde a guia, pula, mordisca a mão de Karin. Errado. A guia é retirada e a cadela faz cara de desespero. Vira-se para Vera como quem diz: “Viu isso? Não vai fazer nada?” A dona controla-se e nem a olha nos olhos. Um tempo depois, Maria tem nova chance. Melhora um pouco, mas continua descontrolada. Perde as três chances de passear. Passa-se a um outro exercício.

Karin hipnotiza Maria com o cheiro do petisco e a faz andar ao seu lado, sem guia, num percurso imaginário pela sala. Depois, é a vez de Vera. A dona tem mais dificuldade, e com ela Maria faz mais manha, mas os progressos aparecem na hora. “Essa é a segunda aula. Acho que a Maria vai ficar mais educadinha e feliz. Tudo começa com a nossa reeducação”, diz a dona.

Karin segue atrás de clientes por toda São Paulo com uma Parati vermelha 1986. O trabalho holístico com cachorros e donos opera pequenos milagres. Completamente apaixonada por animais, ela lamenta as atitudes da indústria que produz rações coloridas, “um veneno”, de criadores que multiplicam cães problemáticos apenas pelo lucro, de donos que transformam cachorros como os pit bulls em “uma extensão de seu corpo e sua masculinidade”. “O cão não nasce ruim. A culpa dos problemas, infelizmente, é do homem”, ensina esta encantadora de cachorros. E de seres humanos.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

antes que eu me esqueça

...eu nem percebi, mas já faz um ano que escrevi um outro texto, também chegando em casa, com uma sensação de urgência parecida à que iniciou este modesto blog (o primeiro post, lá nos arquivos, o mais antigo). Há um ano escrevi um e-mail para os meus amigos com o título de "Antes que eu me esqueça".

Não esqueci. E acho que faz bem colocá-lo aqui, direto de outubro de 2006:

"Agora que já estou em casa, que excepcionalmente dei duas voltas na chave da porta, tomei banho e passei hidratante no rosto, deixa eu contar o que acaba de me acontecer.
Todo dia, eu vou de volto metrô de casa para o trabalho. São quatro quarteirões íngremes, sobe e desce, anda e sobe, chegou. Passo sempre por um condomínio que ocupa todo um quarteirão. Pois bem. Faz menos de um mês que a cerca de grade com trepadeiras que contornava o condomínio foi substituída por um muro, de concreto, mais alto do que era a cerca.

Eu, que via de manhã o parquinho com as babás e crianças e à noite o pessoal jogando futebol na quadra ao lado do parquinho, de repente só vejo um muro. Me senti roubada. Tiraram as crianças, as babás, o futebolzinho, a vida. Só ficou o muro.

No terceiro dia de construção, apareceu uma placa "Arquiteta Fulana de Tal", com um número de telefone. Na hora liguei, do meu celular mesmo, andando mesmo. Perguntei o porquê do muro. Disse que com ele parece que agora eu tenho de passar ao lado de um presídio para chegar no metrô, que a rua ficou mais feia. Ela é simpática, diz que também mora no bairro e que lamenta por essa perda. Aí explica que o muro foi um pedido unânime dos moradores do condomínio, que ela nada pôde fazer contra isso. Parece que um homem "chegou a mostrar a genitália" para as crianças do playground numa manhã. Mesmo o condomínio tendo 36 câmeras e segurança 24 horas ao redor da cerca, essa foi a gota d'água. O clamor pelo muro foi unânime.

Pergunto a ela o que será dessas crianças que vão crescer achando que não existem seres humanos do lado de lá da parede de concreto. Como vai ser se elas só conhecerem a rua quando tiverem 13 anos. A conversa, daí em diante, já não avança. Fica o muro. Ficam os condôminos satisfeitos. Ficam as crianças sem saber que há vida a partir da calçada.

Hoje cedo, na ida para o trabalho, vejo que plantaram pinheirinhos do lado de fora do muro. Quem sabe a arquiteta tentou melhorar a aparência de presídio de seu grande trabalho arquitetônico.

Na volta do trabalho, lá está ele de novo, o muro. São mais de sete. Está escuro, garoa fraquinha. Reparo que acima do muro instalaram lanças de ferro. Agora sim, os condôminos deliraram. Sigo meu caminho para casa quando, meio baixinho, ouço um homem falar, atrás de mim, "Fica calma". Ao me virar, ele avança na minha direção e repete "fica calma", eu não diminuo meu passo e, acho que por instinto, vou para o meio da rua. Ele murmura coisas e essa altura já deu pra ver na mão esquerda dele, meio coberto pelo casaco, o revólver. "Não grita, eu só quero a bolsa". A bolsa? Tá maluco? Minha bolsa tem coisa demais, vale muito pra mim do que pra você, vai fazer o quê com isso? Está errado, eu sei, mas no relance, foi isso que pensei. E gritei "O que você quer? Quer dinheiro? Heeein?" Os dois no meio da rua. Eu ainda na direção de casa, ele na minha direção, sem me alcançar. Eu juro que daria o dinheiro, tinha 28 reais, mas pediria pra ficar com a agenda, os documentos. O celular se ele insistisse, também podia levar, enfim.

Ele "Não grita" e eu "Óóó!", e apontei pra calçada, gritando "Olha aí. O que que você quer?". Passava uma mulher, de iPod, nem aí pra gente. Mas ele viu a mulher e falou alto também "Eu só quero uma ajuda pra passagem. Só uma ajuda. Quero ir pra casa". Até franziu a sobrancelha o filho da puta. Eu "Heeein?" "Quer um passe?" Tudo berrado. Ele estendeu a mão, direita, que na esquerda estava o trabuco. Eu destaquei um passe de metrô, hoje mesmo tinha comprado 20 deles, e dei um pra ele. Bem de longe, pra ele não chegar perto de mim. Imediatamente ele mudou de rumo, em direção ao metrô, meio correndo e falou, berrado, "Obrigado. Deus lhe pague". E eu, já mais perto da mulher e longe dele, "O diabo que te carregue, filho da puta!".

Ah, que raiva. Não deu nem medo. A mulher do iPod, que pelo sotaque devia ser alguma gringa desavisada, quando entendeu o que aconteceu, disse o que tinha pra dizer: "Você não devia ter feito isso".

A conversa acabou. Nesse instante, olhei pro caminho que ainda faltava pra chegar em casa e, pela primeira vez em anos, me deu medo de estar ali. Eu estava bem no meio do quarteirão do condomínio. Murão pros dois lados. A garoa fraca e a escuridão, mais o muro, me pareceram assustadores. Pensei em chamar um taxi, mas ali não tinha como e pior seria ficar parada ou voltar para o lado do metrô. Segui para casa. Tensa, adrenada, puta. Muito puta. Muito puta porque o caminho que eu faço para voltar pra casa agora está uma beleza pra assaltinhos como esse.

Antes, a luz da quadra do condomínio iluminava a calçada. Eu via metade do corpo das pessoas jogando e ouvia os gritos do futebol, a derrapagem dos tênis no chão da quadra. Quando o cara falou "Não grita" e eu respondi gritando, eu estava olhando para o muro. Se o pessoal do futebol tivesse jogando, com certeza iria me ver. Aliás, o cara nunca iria me assaltar ali se aquele quarteirão não tivesse se transformado num pedaço tão sinistro da cidade. Ermo, escuro, de ninguém.

Entrando em casa, liguei para o 190. A musiquinha de espera avisa que há muitas ligações e que é preciso ser direto, em primeiro lugar dizer o local da emergência, depois a ocorrência em si. Pííí. Atende um homem. Eu digo, como quem fala a uma secretária eletrônica, pausado e claro, o que aconteceu, como, onde. "E como ele é?", "Mulato claro, magro, alto, com camisa clara e um casaco escuro. Calça jeans, se não me engano" "Vamos mandar uma patrulha para o local, senhora." Eu só lembro dos olhos dele. Frios. Determinados. Depois assustados. Depois espantosamente pedintes. E lembro da voz da arquiteta. E ainda não decidi se passo a ir de carro até o metrô, se passo a voltar de taxi ou se mudo o caminho, para mais longe, para evitar a minha rua. Eu queria a rua de volta, caramba."

OBS: Depois instalaram aqueles holofotes fortíssimos, que acendem quando alguém passa. Ô, coisa feia aquilo. Credo...

um mês depois

Depois de um mês, em que estive de férias, volto ao blog. Pois é... relapso esse brogue, né? Eu sei, mas é assim que dá pra ser, por enquanto. O duro é que provavelmente só duas ou três pessoas (ou ninguém) continua entrando num blog que não se atualiza toda hora - e eu faria o mesmo. Aí que ninguém vai ler, enfim, mas não vou ficar chateada com isso.

Se eu for pensar em motivos pra ficar chateada, ligada a este blog está a tristíssima história da pracinha. Da proibição arbitrária do skate num lugar gostoso demais, feliz demais. ...Infelizmente, por enquanto não há boas notícias sobre isso. A única, se é que vale, talvez seja que eu não desisti de tentar reverter isso. Não merrrmo. Mas vamos com calma.