(hehe... Estou gostando de republicar neste modesto domínio internético as reportagens que mais gostei de fazer. Essa abaixo é de uma história impagável. Saiu na CartaCapital em 22 de junho de 2005)
NÃO É O QUE PARECE
A crônica de como se fez uma das capas de disco mais premiadas da história da MPB: Todos os Olhos, de Tom Zé
Procura-se um motel. Na São Paulo de 1972 isso não é lá tão fácil de encontrar. O jeito é pegar a rodovia Raposo Tavares e afastar-se alguns quilômetros da cidade para estacionar o Fuscão 1500 bordô ao lado de caminhões que descansam sob a placa "Retiro Rodoviário". O rapaz tem 22 anos, é cabeludo, usa faixa na cabeça e calça boca-de-sino. A moça tem vinte e poucos, é bonita, loira de cabelos compridos, tem os olhos claros, pinta de hippie e, assim como ele, é fã da Tropicália. Acessórios trazidos: uma máquina fotográfica alemã Praktika sem flash, quatro filmes Kodacolor ASA 100, dois abajures com lâmpadas de 100 W, fortíssimas, e uma caixa de... Bolinhas de gude?
Esses são os elementos usados na composição da foto da capa de Todos os Olhos, álbum do tropicalista baiano Tom Zé, lançado em 1973.
Tempo de ditadura. Toda a produção cultural, letras, músicas e arte-final do LP passam por censores antes de ir às lojas. Apesar da noite no "Retiro Rodoviário" não ser a única necessária para conseguir a foto da capa do disco, um ano depois dela Todos os Olhos vem ao mundo.
Os censores não atinaram para o que seria aquele fundo róseo com uma gema ao centro. Ainda bem. Tom Zé, o artista tropicalista, sabia que a circunferência no centro da capa era uma bolinha de gude. A repousar sobre uma parte verdadeiramente íntima do corpo humano, aquela mais abaixo do final das costas.
A idéia - de assombrosa afronta à censura - foi do poeta vanguardista Décio Pignatari, grande amigo de Tom Zé. Não eram tempos de brincar com a sorte. E toda a equipe de criação do álbum guardou muito bem o segredo.
Por ironia, logo após Todos os Olhos, Tom Zé caiu em
um ostracismo e quase encerrou sua carreira. Em 1990, o americano David Byrne, ao pesquisar world music, descobriu o baiano. Produziu, então, o CD The Best of Tom Zé: Massive Hits e lançou-o nos EUA. Seria o início da retomada artística de Tom Zé, em franca atividade e produção até hoje. No encarte desse CD, torna-se pública a explicação do que está na capa de Todos os Olhos.
um ostracismo e quase encerrou sua carreira. Em 1990, o americano David Byrne, ao pesquisar world music, descobriu o baiano. Produziu, então, o CD The Best of Tom Zé: Massive Hits e lançou-o nos EUA. Seria o início da retomada artística de Tom Zé, em franca atividade e produção até hoje. No encarte desse CD, torna-se pública a explicação do que está na capa de Todos os Olhos.
A transgressão vira troféu. Tom Zé torna-se cult. E o olho, róseo, pode enfim ser entendido como tal. E é uma das capas mais premiadas da música brasileira. Em 2001, quase 200 personalidades da música elegeram-na, na Folha de S.Paulo, a segunda melhor capa da MPB de todos os tempos, atrás apenas do primeiro disco dos Secos & Molhados, também de 1973.
O sutil e vitorioso acinte à ditadura ganha, naturalmente, a condição de capítulo fundamental na história da Tropicália - citado até em uma reportagem especial do jornal inglês The Guardian, em 2003.
E a história seria essa. Seria. Não fosse a revelação sobre o que, de fato, aconteceu naquela noite no "Retiro Rodoviário". O suficiente para que se afirme: o olho de Todos os Olhos não é o que parece.
O protagonista do "Retiro" era Reinaldo Moraes. Ele trabalhava como assistente de estúdio na agência de publicidade E=mc2, que tinha como sócio Décio Pignatari, já um grande nome da poesia concretista. O chefe encomenda-lhe a foto. E tudo fica por conta do assistente. Inclusive providenciar a modelo.
"Queria muito participar desse jogo de afronta, queria muito executar uma idéia do Décio Pignatari, de quem eu era fã", diz Reinaldo, 33 anos depois, já grisalho e não mais o "boy hippie marxista", como se definia. Hoje, é escritor de inspiração beatnik, autor do desbocado Tanto Faz (Azougue Editorial), entre outros.
Aos 22 anos, e diante de tamanha missão, Reinaldo pensa em Vera (nome fictício), uma namorada bissexta, para modelo. Aproveitando um clima de reconciliação, lança um "sabe o Tom Zé?", para introduzir o assunto.
No exato instante, o próprio Tom Zé, nascido e criado em Irará, sertão da Bahia, agonizava com a simples idéia de que se pedisse uma coisa dessas a uma moça:
-- Fiquei apavorado quando o Pignatari me falou que tinham encontrado a modelo. E ele retrucou: "Como é que você quer traseiro sem modelo?".
Vera, fã dos tropicalistas e de seu ripongo namorado Reinaldo, aceita o convite. E lá se vão, Vera e Reinaldo, de Fusca até o "Retiro Rodoviário".
A sessão de fotos. No quartinho mal-arrumado do motel, Vera, empolgada, deita-se de costas na lateral da cama. No chão, as bolinhas de gude. Reinaldo posiciona os abajures na diagonal, de modo que a luz incida diretamente sobre o alvo. A lente é uma de 50 mm colocada no avesso para fazer a função de macro, e fica a apenas 20 centímetros do corpo da garota, já quase de cabeça para baixo.
Começam os problemas técnicos. A bolinha não pára. Cai, rola costas abaixo. Tentam-se novas posições. E mais outras. Nada da bolinha estacionar. Reinaldo descreve o desconforto:
-- Ela ficou constrangida, quis parar, mas eu estava obstinado. Continuamos tentando. Foi bem complicado...
A bizarra cena transformou-se em mal-estar. Quando beirava o insuportável, uma das bolinhas parou quieta. Reinaldo descarregou cliques. Consumiu todos os filmes. Testou velocidades, posições da luz, enfim. Fez-se de tudo, menos sexo. Deixaram para trás um quarto cheio de bolinhas pelo chão, sem coragem de se olhar nos olhos.
No dia seguinte, Reinaldo leva o resultado para a apreciação na agência:
-- Foi uma atitude poética. Como foto, algumas ficaram ótimas. Mas, mesmo nas melhores, era evidente do que se tratava.
Décio e Marcão, o diretor de arte da agência, ficam desolados. Décio, então, pede nova tentativa ao assistente. E lá vai Reinaldo falar de novo com Vera sobre Tropicalismo... Desta vez, nada de motel. Vão à casa de uma amiga. E, antes que repetissem a luta contra a obviedade fisiológica, uma nova idéia.
Vera tem a boca grossa. Lábios cheios de carne bem rósea. Vale tentar. Ela topa. Prefere. Senta-se no chão com a cabeça jogada na cama e faz biquinho. Uma bolinha é colocada e dali não sai. Os lábios contraídos formam frisos que em muito se parecem com o que devem parecer. Uma única série de cliques basta para, finalmente, realizar a idéia de Pignatari.
Aquele não era tempo de Photoshops, e a imagem é impressa sem retoques. Uma boca se fazendo passar por seu extremo oposto. Simples assim. Nos créditos do LP (reproduzidos em sua reedição em CD) constam: direção de arte de Marcão, fotografia de Reinaldo Moraes.
Vera não quis ver as fotos. Deixou pra lá. Depois de mais outras idas e vindas, também deixou Reinaldo pra lá. Ele soube que ela mora no interior de São Paulo, é dona de uma pensão e não se casou.
Já o autor da idéia, Décio Pignatari, recusa-se a comentar o fato. Interrompeu um telefonema, que atendeu desprevenido, ao ouvir as palavras Todos os Olhos:
-- Olha aqui! Eu já falei muito desse assunto e não tenho mais nada pra dizer sobre isso, viu?
Desligou, solenemente, na cara. Procurado outras oito vezes em uma semana, mandou dizer pela secretária que não fala sobre isso.
Já Tom Zé ouve atenciosamente a verdadeira história da capa de disco mais importante de sua carreira. E cai numa gostosa gargalhada:
-- Hahaha! Então me enganaram esse tempo todo! F.d.p., me enganaram! Hahaha! ...E que alívio! A moça não precisa mais ter vergonha. E pode se congratular de ter sido personagem de uma rebeldia.
Ainda sob o choque da notícia, pede a capa à esposa, Neusa. Em silêncio, põe o vinil em frente aos olhos, analisa-o como se fosse a primeira vez, e matuta:
-- ...É. Agora que você falou, dá pra viajar. Mas a gente não duvidava não... Pode ser uma boca mesmo, hehehe... Pode ser que seja mesmo, hahaha... E até ontem isso aí era oficialmente outra coisa.
Um comentário:
Phy, curti muito seu texto.
Tinha lido essa história do olho que não é o olho em outro lugar.
Não lembro agora, o que importa é você conseguir realmente fazer uma trama, conduzir a história. Cinematográfico. Primeiro ato, intermezzo, segundo ato, fim.
Que estrelinha o Pignatari, hein? Certo, ele é famoso, poeta, semiólogo, o escambau, deve estar de saco cheio dessa história, mas nem pra falar direito com você, explicar o porquê. Já o Tom Zé, figuraça.
Bom, deixo o pop star e o doidinho de Irará para trás e volto a dizer que você manda bem!
Abraços,
Caco.
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