(esta crônica foi publicada na edição 472 da CartaCapital, de 28/11/2007. O desfecho do jogo Brasil X Uruguai, dia 21, é conhecido. Aqui vai uma visão dos bastidores)
O dia da contramão
Phydia de Athayde
Congestionamento, é claro. Começa no trânsito parado a odisséia de qualquer um que tenha se aventurado ao Morumbi na noite da quarta-feira 21. Até o ônibus que leva a seleção brasileira ao estádio fica preso nas ruas entupidas de carros. Mas por pouco tempo, pois logo a polícia trata de abrir caminho. Pela contramão.
É que a seleção brasileira está prestes a enfrentar o Uruguai, nas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2010, e nada pode sair errado. Uma espécie de contramão autorizada parece ser a regra neste primeiro jogo oficial depois de o Brasil ser confirmado como sede da Copa de 2014. E o estádio paulista esforça-se para mostrar que pode, ou poderá, ser um dos palcos da Copa.
Apesar da proibição de ambulantes, pela contramão compra-se cerveja. “Conseguimos duas latinhas por 5 reais”, diz Tatiane Camparin Raso, na porta do estádio. “Compramos escondidinho. No esquema brasileiro”, resume bem. Juliano, o marido, carrega um cartaz para pedir a escalação do goleiro são-paulino, Rogério Ceni, preterido por Dunga. “Mas, fora isso, o técnico está fazendo um bom trabalho”, diz, enquanto termina a cerveja. Dentro do estádio, a bebida é vendida apenas na versão sem álcool.
No tumulto da calçada, três alemães tentam vender um ingresso sobressalente. Em português sofrível, negociam com um cambista por 50 reais o bilhete que custou 80 e será revendido por 100. Um dos alemães, Wolfang, veio ao Morumbi pela primeira vez em 2001 e compara: “Não mudou nada de lá para cá. O estádio é bonito, mas é muito difícil de chegar, não tem metrô, informação, você é maltratado na rua”. Tudo isso pode mudar até 2014? Wolfang gargalha: “Eu espero”.
Do lado de dentro, o esforço para criar a ilusão de compatibilidade com as exigências internacionais produz discrepâncias que, em última análise, se aproximam ainda mais do Brasil real. Desigual. Um lugar onde o privilégio dos escolhidos convive com o infortúnio dos demais. De um lado, camarotes onde portadores de pulseirinhas “vip” entraram no estádio e bebem cerveja e chope (com álcool) de graça. De outro, os que pagaram o menor preço, 30 reais, para desfrutar da pior visão do campo. Não só pelo ângulo, baixo demais, mas pelo azar de terem ficado atrás da ambulância, que encobre a visão do gol.
“Ti-ra a am-bu-lân-cia! Ti-ra a am-bu-lân-cia”, pedem, em vão, pagantes como Chicão. “Não tenho condições de pagar pela arquibancada. Sabia que aqui era ruim, mas quis vir mesmo assim”, diz. Ao seu lado, o parceiro Arnan não esconde a decepção. “Não sabia que ia ter essa ambulância aqui, nem todos esses policiais, assim não vai dar pra invadir o campo”, lamenta o torcedor, que não disfarça ser um típico geraldino.
De repente, a turma da ambulância começa a ganhar bandeirinhas plásticas do Brasil, arremessadas por promoters do camarote. O pessoal gosta, levanta os braços, pede mais. Até que do meio da multidão vem um pedido que é também um desabafo: “Então joga uma cerveja, pô!”
Espremido entre os vips e a turma da ambulância há um diminuto espaço reservado à mídia impressa e aos sites. Não está sinalizado, e só a muito custo se chega ao local, batizado de “curralinho” pelos presentes. Longe de banheiros e sem bebedouros nem copos d’água por perto, é um canto improvisado com mesas de compensado e fios por todos os lados. Três radialistas uruguaios querem saber onde estão: “Buscamos o setor de imprensa e não o encontramos”. Ao serem informados que era ali, não disfarçam o assombro. “O jogo já vai começar, vamos ficar por aqui mesmo”, resigna-se Rodolfo Folle, da Radio Emissora Ciudad.
A poucos minutos do início da partida, apesar de lotado – e da arrecadação recorde no futebol brasileiro, de mais de 4,3 milhões de reais – o Morumbi não está em polvorosa. A torcida não canta, vai pouco além do fraco “Bra-sil, Bra-sil”.
Começa o jogo e o time brasileiro não faz por merecer mais que isso. O embolado nacional fica à espera de algum lance genial. É isso ou nada. E o gol uruguaio sai aos 8 minutos. Quando a seleção tenta seus ataques, o estádio acompanha numa histeria crescente, que dura apenas o tempo de o time perder novamente a bola.
Nos bastidores, outra contramão. Se um repórter precisa locomover-se dentro do estádio, é obrigado a sair e voltar por outro portão, já que os camarotes impedem a passagem pelo anel inferior. Depois de uma travessia por estacionamentos, bloqueios, escadas e túneis, alcançam-se as cadeiras cativas dos são-paulinos. Em meio a senhores de cabeça branca, três policiais militares, supostamente escalados para trabalhar, não fazem mais que assistir à partida. Na contramão de suas atribuições, e bem quietinhos.
“Senta aí, ô geraldino!”, escuta um desavisado que levantou. Em campo, o time brasileiro segue desorganizado. O Uruguai merece outro gol. Dunga é xingado, com aquele coro que ruboriza locutores como Galvão Bueno. Em seguida, os são-paulinos clamam por seu treinador: “É, Mu-ri-cy!” Os uruguaios fazem o goleiro Julio César trabalhar muito, até que Luís Fabiano marca para o Brasil. Fim do primeiro tempo. Retorna o coro que sugere a Dunga um passeio periclitante.
Se a arquibancada está chocha, os camarotes fervem. Vips correm para bancadas com cachorro-quente, sanduíche de carne louca, chafariz de chocolate derretido, massas, refrigerantes, cerveja, chope e caipirinha. O DJ toca axé music e um trio de dançarinas anima principalmente os homens. Entre eles, um enorme efetivo de policiais civis. De uniforme preto, coletes e símbolos do Garra e Deic, apesar da cara de Capitão Nascimento, não sabem se comem hot-dog, chupam picolé, tomam guaraná ou se fotografam as garotas com o celular.
Ainda há o segundo tempo. O time brasileiro segue mal, mas é premiado por outro gol de Luís Fabiano, que, na contramão, se torna o herói.
Antes do apagar das luzes, um show à parte na “zona mista”, local onde repórteres, fotógrafos e cinegrafistas aguardam a saída dos jogadores em jogos oficiais da Fifa. Novos curralinhos, agora estrategicamente colocados no estacionamento dos ônibus. Jornalistas disputam espaço com delegados, diretores, amigos-do-amigo e com garotas como Camila Borges e Elisa Samudio.
De salto fino, jeans e blusinha justíssima, elas chamam pelo nome todos os jogadores e os atraem para a beira do cercadinho. “A gente é amiga do Kia”, explicam a quem perguntar. Elisa, a morena, pede a um repórter: “Vai lá dentro e diz que tem duas mina gata aqui fora”. Kia é aquele, ex-Corinthians, ligado à máfia russa.
O frenesi é interrompido quando o ônibus da delegação uruguaia irrompe em plena “zona mista” e bloqueia a visão da saída do vestiário. Na manobra, o teto do veículo escora e quase rompe uma tubulação do teto do estádio. Era melhor ter entrado na contramão.
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
uma noite no Morumbi
Postado por Phydia de Athayde às 21:04 11 comentários
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
ONG ou não-ONG?
(publiquei essa entrevista como parte de uma reportagem maior sobre a CPI das ONGs. Saiu na edição 470 da CartaCapital, de 14/11/2007. Acho legal reproduzir porque dá uma esclarecida importante no que é, ou deveria ser, ONG e as diferencia das "fábricas de receber dinheiro público", que se escondem sob o mesmo rótulo)
Universo caudaloso
Para a Abong, uma ONG deve ter compromisso com a luta por direitos
Apesar do nome, Associação Brasileira das Organizações não Governamentais (Abong) tem 270 integrantes e representa menos de 1% das mais de 276 mil ONGs do País. Isso se dá porque a associação usa critérios conceituais para aceitar filiadas. “Para nós, ONG é uma entidade envolvida na luta por direitos”, delineia Tatiana Dahmer, uma das diretoras-executivas da associação. Na entrevista a seguir, ela esclarece as diferenças entre entidades que recebem dinheiro público, fala de conceitos e nuances Terceiro Setor.
(a Phydia de Athayde)
CartaCapital: Por que tanta confusão em torno do que é uma ONG?
Tatiana Dahmer: Há um desconhecimento generalizado. ONG é, na verdade, um termo político. Dentro do nicho das entidades sem fins lucrativos podem existir fundações, associações e associações religiosas. Uma tentativa de definição resultou nas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), que diferem das ONGs por permitir a remuneração de diretores. Mas toda a legislação a respeito é antiga e contraditória, enquanto há diversos projetos de leis não votados.
CC: A situação atual, de repasses milionários sem controle, é fruto do crescimento do Terceiro Setor. Como isso se deu?
TD: Todo o debate sobre Terceiro Setor vem de um viés liberal norte-americano, que parte do princípio de estado mínimo. A Abong surgiu em 1990 para construir a identidade das ONG. Na nossa concepção, ONG não é caridade, não é marketing social, não tem que fazer o papel do estado. Defendemos, por exemplo, que o Instituto Nacional do Câncer tenha condições de cuidar de crianças, sem depender da Fundação Ronald McDonalds. Para a Abong, ONGs são associações civis envolvidas na luta por direitos.
CC: O que origina o descontrole de verbas públicas?
TD: Há a questão da falta de identidade das ONGs, e há o problema concreto do mau uso. Existe muita má-fé. Este é um universo caudaloso, e por isso não se pode generalizar. Imagine que há pelo menos 9 formas de repasse de dinheiro para a sociedade, e todas podem ser burladas.
CC: Como deve ser a relação do estado com as ONGs?
TD: ONG não tem que executar política pública. Se o estado tem problemas, pode usar uma ONG como modelo de política pública, e não simplesmente se eximir da responsabilidade e passá-la para a ONG. A Abong defende que os conselhos de políticas públicas funcionem. Há um debate importante sobre modelo de desenvolvimento que deve ser feito. A matriz do problema é não se discutir a distribuição de recursos públicos.
CC: O que esperar da CPI das ONGs?
TD: As denúncias têm de ser apuradas. Mas é preciso diferenciar má-fé de irregularidade por conta do excesso de burocratização e de particularidades regionais, como, por exemplo, o fato de um barqueiro na floresta não tem CNPJ. Hoje somente ONGs com ampla estrutura contábil alcançam os recursos públicos. É importante que se construa uma regulação que trate organizações de tipos e portes diferentes. E é fundamental não criminalizar as ONGs. A regulação tem de ser sobre o dinheiro público, e não sobre o direito constitucional da sociedade civil se organizar.
Postado por Phydia de Athayde às 15:44 0 comentários
Entre a fé e o mé
(mais uma Brasiliana. Esta, da edição 428 da CartaCapital, de janeiro deste ano. Também poderia se chamar "Entre a birita e a bênção"...)
Entre a fé e o mé
por Phydia de Athayde
Um boteco, uma igreja, um boteco, uma igreja. Um boteco, umas casinhas amontoadas, uma igreja. A disposição de estabelecimentos nas ruas estreitas, de cacos de asfalto e terra, da periferia de São Paulo, assim pode ser resumida.
Doses alternadas de pinga e de encontros religiosos são oferecidas facilmente em qualquer fim de tarde da zona sul da cidade. A poucos metros da Linha Lilás do Metrô (curiosamente a única sem ligação com nenhuma das demais) ficam o Jardim São Roque e o Parque Arariba, bairros que se misturam e se parecem.
Uma filial da Igreja Internacional da Graça de Deus divide parede com um boteco, sem nome, como todos por ali. Na igreja, é dia de “aconselhamento para a vida sentimental”. No boteco, uma voluptuosa mulher de minishort, feita de papelão em tamanho real, convida o passante a tomar uma cerveja.
Lindaura Ferreira Alves, de 50 anos, está ao lado da igreja. Duas Bíblias em punho, ela freqüenta a Boas Novas da Salvação, que também fica por perto. Lindaura passou a tarde no Jardim São Luiz, bairro próximo, em campanha. “Campanha é orar pelos necessitados, tirar a palavra, louvar”, explica. Joana Helena Santiago, de 44 anos, é sua “irmã no Cristo Jesus”, ou seja, é sua amiga. Bíblia em punho, fala de igrejas que freqüentou:
– Antes eu ia na Aprisco de Deus. Mas lá não tinha fiel, ficou fraca e eles se mudaram. Então fui para a Boas Novas da Salvação. Prefiro estar na igreja do que ficar olhando certas coisas do lado de fora. Prefiro louvar a Deus. A gente não vê, mas sente a presença dele.
O lado de fora da igreja significa a rua e, muitas vezes, o boteco. Em quantidade, a oferta de botequins é bem maior do que a de igrejas.
– Tenho um irmão que bebe, bebe muito. A gente ora pra Jesus ter misericórdia dele. O Senhor tirou meu marido do boteco, já tem quatro anos que ele está na presença do Senhor – comemora uma sorridente Joana.
Na rua de cima, a imponente arquitetura da Assembléia de Deus traz lembranças a Carlos Eduardo da Silva, de 17 anos. Por imposição familiar, ele freqüentou a casa por três anos. Hoje, se diz ateu, mas considera Jesus “um cara muito inteligente”:
– Minha irmã é evangélica e me obrigava a vir, ela falou que eu ia ganhar uma camiseta. Não ganhei camiseta, ganhei uma Bíblia. ...Engraçado que só na minha rua tem três igrejas, uma do lado da outra. Por que elas não se juntam pra ajudar as pessoas, pra melhorar a rua? Cada uma só quer tirar os fiéis da outra.
Perto dali, uma mesma parede separa outra igreja de outro boteco. A filial Arariba da Renascer em Cristo está fechada. Pendurado no portão, um apelo aos fiéis: “Doe latinhas e cartuchos de impressoras”. Por ali qualquer um sabe que 60 latinhas de alumínio completam um quilo, e que um quilo é vendido por 3 reais. Curioso pensar que os fundadores da Renascer, acusados de lavagem de dinheiro no Brasil, foram presos nos EUA e tiveram seus bens, que incluem mansões e carros de luxo, bloqueados pela Justiça de Miami.
Do lado de cá da parede, o boteco do Juarez está aberto. Entre os clientes, Francisco Eduardo, copo de cerveja em punho, toma a palavra:
– Passou do tempo dessa igreja sair daqui! É empapuçado esse som que eles fazem. Se você está conversando e começa a bateria, pode até gritar que o outro não vai te ouvir. É guitarra e bateria, lá em cima. Também tem uma mulher que tem um peito pra falar. Ela fala alto pra caramba!
Juarez abriu o boteco há dez anos. Ao lado, onde hoje fica a Renascer, funcionava uma adega distribuidora de bebidas. “Daqui só saía 51”, garante Francisco, morador do bairro há 28 anos. Juarez diz que, com a igreja, ganhou uns poucos clientes, ocasionais:
– Se o marido não é crente, ele vem, larga o pessoal lá tomando refrigerante e passa aqui pra tomar um negócio, escondidinho.
Francisco continua reclamando do barulho “empapuçado” dos cultos. Ele ainda está com a roupa de serviço. Suas mãos de dedos grossos, ressecadas de cal, confirmam. Francisco é pedreiro. Um pedreiro muito fiel:
– Ah, aqui é meu ponto. Todo dia passo aqui. Saio da obra às 5h30 e venho pra cá. Quando fecha, às 9, vou pra casa.
Religiosamente.
Cai a tarde. Pela rua, de banho tomado e cabelos ainda úmidos, caminha Vera Lúcia Mendonça, de 30 anos. Ela não carrega Bíblia. Despede-se do marido – que está de terno e gravata, na frente de uma casinha de alvenaria amontoada, como todas da rua – e segue para a Assembléia de Deus Mundial da Fé. Vera explica que ele vai pregar em uma outra igreja:
– Nessa, eu estou começando a ir agora. Sou obreira da casa do Senhor, missionária, pela misericórdia de Deus. Vou dirigir o culto hoje.
São quase 7h30, hora do culto. Vera cumprimenta o pastor, Javas Araújo, que a espera na porta da igreja. Rapidamente se despede e caminha até o fundo da pequena casa para se preparar. De longe, pode-se ouvi-la orando, em voz alta.
Enquanto isso, o pastor aproveita para exibir, orgulhoso, alguns atrativos da igreja. Do lado do altar há uma caixa de papelão com os dizeres: “Quebra de Maldição”. O pastor explica tratar-se de uma campanha e diz que, ali, os fiéis depositam bilhetes, cartinhas e pedidos de proteção. Ele também aponta para uma armação de metal, com quase 2 metros de altura, que suporta um pano branco. É a “Portas Abertas”:
– Essa é outra campanha. A porta fica no meio da igreja e no final do culto os fiéis passam por ela, recebem a unção, saem abençoados.
Não muito distante dali, outro culto está acontecendo. Em volta da mesa de bilhar, “Bizinho”, “Wandipe”, “Lãozinho” e “Coxinha” cumprem o ritual diário de tomar cerveja e disputar partidas. Sempre no mesmo boteco, sempre na mesma hora. Ivanildo de Oliveira e Silva, de 26 anos, é quem cuida do estabelecimento, que, à sua maneira, não deixa de ser um templo. Ivanildo é pernambucano. Veio para São Paulo aos 18 anos, depois que tomou dois tiros e ficou paraplégico, para fazer reabilitação na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD):
– Arrumei minha vida, voltei a estudar, foi bom demais. Agora gosto de cuidar do bar porque faço amizade, é uma psicologia pra mim, me distraio um pouco e esqueço dos problemas.
Ivanildo faz questão de mencionar que namora, há quatro meses, com Roselene. Convidado a falar de sua fé, diz que deixou de ser católico quando ficou paraplégico. Rindo de si mesmo, avalia:
– Agora eu sou um crente chato. Não saio pregando, mas leio muito a Bíblia. Tenho uma aqui comigo, leio quando o bar está vazio. Mas sou aquele crente meio xarope, que bebe e fuma, né?
Postado por Phydia de Athayde às 15:32 0 comentários
terça-feira, 13 de novembro de 2007
Minutos de sabedoria
(publiquei esse texto na edição 439 da CartaCapital, de 11/04/07. ...É sobre uma dessas pessoas que dá gosto conhecer. Que nos fazem repensar coisas básicas da vida. Como o tempo)
Minutos de sabedoria
por Phydia de Athayde
16h35. De fora, não se diz o que é. A porta espremida entre o 2.892 e o 2.890 da rua Augusta, cercada por samambaias, jibóias e orquídeas, faz pensar em floricultura. Um passo à frente e as plantas cedem espaço a uma variedade de relógios pregados na parede esquerda. Clássicos, modernos, kitsch, todos meio empoeirados. Também não é uma loja. Outro passo e, ao fundo, um senhor sentado em frente a uma mesa de ourives tirará a lupa de encaixe do olho direito e erguerá o rosto para ver quem chega. Lin Chun Long, de 54 anos, o relojoeiro mais tradicional do bairro.
16h43. Além dele, dois senhores, uma senhora e um cachorro. Pierre, o jack russell terrier, fuça os vasos de plantas. O dono, o tarólogo e terapeuta energético Teruo Yamada, 42 anos, acaba de trazer um café para o senhor Lin. “Carioca e sem açúcar, do jeito que ele gosta.” Teruo conhece Lin há mais de uma década, quando sua loja ficava na Galeria Ouro Fino, mais acima na mesma rua. “Somos amigos, é um encontro de almas”, orgulha-se. “Ele resolve tudo. Hoje eu vim para acertar meus relógios digitais.” Todos os dias, o dia todo, as duas cadeiras e os dois banquinhos ao lado da mesa estão ocupados por clientes. Muitos, como Teruo, tornaram-se amigos. Passam para conversar, dar um “oi”, oferecer um café ou uma água. E até trazer relógios.
16h54. Maria Sena, copeira da joalheria H.Stern, está de saída. Ela leva de volta o relógio de uma cliente e ganha um beijo de Lin. Ele trata a todos pelo nome, que sabe de cor. Centenas. Quando saiu de Taiwan aos 25 anos, falava apenas mandarim.
17h11. Uma senhora elegante, óculos de lentes azul-claras, acaba de entrar. Dona Fany anuncia o que trouxe, uma pulseira-relógio e “aquele ancião”, o Seiko que usa há duas décadas. Enquanto Lin habilmente troca as baterias, eles mantêm um diálogo tranqüilo, de velhos amigos:
– Tudo bem com a senhora?
– Graças a Deus, por enquanto estamos conseguindo andar.
– A gente precisa de tão pouquinho...
– ...para ser feliz.
– É isso. Quanto mais simples, melhor. ...Que horas o alarme? Seis?
– Seis e meia.
17h21. Relógio acertado. Doze reais. Antes de partir, dona Fany abre um sorriso ao falar do amigo: “Ele vai viver uns 300 anos, é a pessoa mais tranqüila que conheço”. Pouco depois, o próprio dá um exemplo de como ser zen. Lin aponta a entrada da loja, sem nenhuma placa indicativa, e explica, com sotaque que 28 anos de Brasil não tiraram:
– Fiz de propósito. Essa fachada é antiestresse. Esse é o volume que dou conta, só dos amigos. Senão, não dá conta.
17h44. Mal termina a frase, atende o telefone: “Hai!” Enquanto conversa com uma das filhas, em mandarim, arruma o troco para outra cliente. Além de uma nota de dez, devolve um real em moedas cuidadosamente acomodadas em um minúsculo saquinho plástico.
17h46. Lin sabe a localização exata de todos os itens que superlotam a pequena mesa de trabalho. “Quem magoar o Lin vai se ver comigo”, diz um bilhete colado à luminária. Enquanto conversa, não precisa de mais de cinco segundos para achar uma correia, uma bateria, um pino. Nunca perde de vista quem entra ou sai da loja. Um rapaz o cumprimenta: “Beleza?”, “Pura”, ele responde. Além de tratar a todos pelo nome, sempre sabe o que cada um veio buscar.
18h01. Em outro raro intervalo, Lin retoma a conversa. Aos 22 anos, depois de servir no exército, decidiu deixar Taiwan para “aventurar-se no mundo”. Ao comunicar ao pai a decisão, ouviu a frase que determinaria seu futuro: “Se você quer partir, tem de aprender uma profissão que caiba numa maleta”.
O jovem vagou pelas ruas de Taiwan até encontrar no ofício de relojoeiro os quesitos “mínima ferramenta, mínimo espaço” de que precisava. Passou três anos como aprendiz. Trabalhou em troca do almoço, até dominar a técnica. Estava pronto. Porém, um mês antes do embarque, por artimanha do destino, apaixonou-se.
“Eu sou maluco, viu?”, avisa antes de prosseguir. De malas prontas, tomou coragem e pediu a mão da esposa, cujo nome brasileiro é Suzana. Noivo, partiu para o mundo. Passou alguns meses no Japão e no Canadá, e chegou a Buenos Aires em 1978. A futura mulher o encontraria seis meses depois. “Só namorei depois do casamento”, conta ele.
Na capital portenha, Lin “hablava mucho” castelhano, mas confessa que sofria por não se comunicar direito. Outro problema era a economia, de inflação galopante, que prejudicava o negócio dele e da irmã. Relógios, ela no balcão, ele na assistência técnica. O ofício de relojoeiro, ao contrário das línguas e das economias, é perene. “Muda só design, técnica é a mesma”, diz.
Sem planos anteriores, veio parar em São Paulo. Um grupo de chineses viajaria ao Brasil e um casal havia desistido. Lin e a esposa ficaram com as vagas. Desembarcaram na Liberdade, tradicional reduto oriental na capital paulista. “Gostei. Achei o povo mais simpático, a colônia era grande, a economia boa. Voltei a Buenos Aires, arrumei tudo e em uma semana estava aqui.”
Lin instalou-se na Liberdade e começou a freqüentar aulas noturnas de português. De dia, dividia com um conterrâneo o espaço na Galeria Ouro Fino, na Augusta. No Brasil nasceram as duas filhas, Juliana e Luana, cuja foto ele exibe na parede da loja. Anos depois, Lin trocou o bairro da Liberdade e foi morar na Saúde, movimento feito por muitos imigrantes orientais. Nunca saiu da rua Augusta.
18h38. Cai a tarde. O movimento, enfim, arrefece. Em um espaço de apenas duas horas, 14 clientes procuraram mister Lin. Outros tantos, da calçada, acenaram para ele. Todos saíram com um sorriso, muitos com um relógio consertado, embora esta não fosse a principal razão da visita.
18h43. Já é hora de fechar? Mais uma surpresa, ou melhor, uma lição:
– Eu não tenho hora para nada. Eu nem uso relógio. Meu trabalho é funcionar relógio. Eu não vivo em função de relógio.
19h41. É noite, a lojinha de Lin está fechada. Sobre a porta de aço, uma imagem pintada. Em um fundo alaranjado, um bonequinho de chapéu chinês faz um “t” com as mãos. Abaixo, lê-se a mensagem de Lin para o mundo: “Dá um tempo”.
Postado por Phydia de Athayde às 15:10 1 comentários
sexta-feira, 9 de novembro de 2007
"diário de um cartola"
Este post é para recomendar a leitura da coluna do Sócrates, também na CartaCapital. Ele se coloca na pele de um certo cartola brasileiro, comentando a carreira e a chegada da Copa ao país. Leia http://www.cartacapital.com.br/edicoes/469/diario-de-um-cartola e me diga...
Postado por Phydia de Athayde às 16:26 0 comentários
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Ensaio sobre a cegueira
Essa crônica saiu na CartaCapital de 31 de outubro, edição 468. (Ainda vou aprender a botar o link bonitinho, direto no nome www.cartacapital.com.br, mas tá valendo.) Foi muito, muito legal viver a cegueira. Uma experiência tão rica que me fez desejar que todo mundo passasse por ela. Bão, chega de conversa:
Ensaio sobre a cegueira
por Phydia de Athayde
Elas são lindas. Mais do que isso. São lindas selecionadas. Lindas dentro de um padrão que exige pelo menos 1,72 metro de altura e 14 anos completos. Pesam, em média, 50 quilinhos. Deixaram para trás 79.975 aspirantes a top model e são finalistas do Elite Model Look 2007, o concurso da agência de modelos que revelou Gisele Bündchen. Um dia, Bündchen teve 14 anos e participou das mesmas seletivas que elas passam hoje. Tudo igualzinho, não fosse uma novidade recém-implantada na preparação das finalistas.
A novidade nada tem a ver com a capacidade vital da modelo sair bem em fotos. Ao contrário. Elas, as lindas, estão prestes a ser privadas do sentido que mais usam, e do sentido que devem despertar no mundo para ter sucesso na profissão. A visão.
As 20 meninas e os cinco rapazes finalistas do concurso de modelos saem do hotel na zona sul paulistana, onde estão concentrados, e são levados, de ônibus, até Campinas. Na cidade a 90 quilômetros da capital paulista fica a única sede permanente do museu Diálogo no Escuro da América Latina (há outras cinco na Europa e uma em Israel, além de exposições temporárias pelo mundo). É curioso chamar de museu um local aonde se vai para não ver nada. A idéia é exatamente não enxergar. Percorrer um trajeto por ambientes tão diferentes quanto uma floresta, uma cidade ou um barco, na escuridão total. Nem um pingo de luz.
Dentro do ônibus, a modelo Karine Marschall, gaúcha de Nova Hartz, 14 anos, 1,76 metro e 52 quilos, mata o tempo olhando-se no pequeno espelho que traz na bolsa. Mira os olhos azuis, o nariz perfeito, a boca desenhada. Quer viver disso, da imagem que confere em silêncio e por longos minutos, como perdida na contemplação do belo.
Duas horas depois, saem do ônibus correndo para não estragar a escova na garoa e chegam à entrada do museu, no Galeria Shopping campineiro. Diante delas, apenas uma parede vermelha com uma porta corrediça.
Um grupo de oito é formado e entra numa ante-sala, à meia-luz. Soltando gritinhos de nervoso, as jovens modelos recebem uma bengala de alumínio (igual àquela usada por cegos) e uma recepcionista dá instruções básicas. A pouca luz se esvai completamente. Fica o breu. Somem os rostos harmoniosos, os cabelos sedosos, os sorrisos treinados para agradar. Ficam as vozes estridentes. “Ai, quem está aí?”, “Ai, ai, aiii”, “Gente, cadê?”
Aparece Tiago. “Oi meninas, eu sou o Tiago, vou guiar vocês pelo passeio, tá legal?” Ele pergunta os nomes de cada uma e explica que é preciso falar sempre. No escuro, quem não fala é invisível. Tiago, assim como todos os guias do museu, é deficiente visual. A intimidade com a falta de visão é o melhor guia para quem nunca se sentiu cego. No escuro, a única referência é a voz de Tiago. Os gritinhos demoram a cessar. É difícil aceitar que não há o que ser visto. Ninguém sabe o que está à sua frente.
As meninas caminham rentes a uma parede acarpetada. Logo ouvem o som de passarinhos, de água corrente. Ao poucos, se soltam da parede. O corpo estranha ao pisar um chão irregular. Mais gritinhos. “Calma, venham para cá, seguindo a minha voz”, diz Tiago. Com a segurança só possível a quem tem intimidade com o escuro, ele mostra a floresta. A textura das folhas, a aspereza de um tronco. Encontrar uma árvore no escuro, senti-la, ligar o que se sente à imagem que se tem de uma árvore é enxergá-la como nunca.
Logo as mãos sentem uma parede de pedra por onde escorre água. “O que é isso?”, pergunta Tiago. “Uma cachoeira!”, responde uma voz, encantada. Não é bem uma cachoeira. Enxergar no escuro não é fácil.
Os olhos teimam em ficar abertos. Tiago diz que é melhor fechar, para não dilatar demais a pupila. Não adianta. Algo instintivo os mantém escancarados, sedentos por uma luz que não vem. Lacrimejam, então fecham um pouco.
Saindo da floresta, poucos passos e, de repente, uma buzinada alta e o ronco de um motor aterrorizam, congelam todo o grupo. Parece um monstro, mas é só a cidade. Muro de tijolo, portão de grade, calçada, tudo é novo. O latido de um cachorro assusta e todas gritam. Em seguida, Tiago mostra às meninas que há um degrau: é o desnível entre a calçada e a rua. Elas sentem o degrau com as bengalas. Então, num movimento coordenado e de muita destreza, esperam o som da freada de um carro para, só depois, atravessarem a rua.
O medo do escuro vai dando espaço para outra coisa. Já quase não há gritos e o grupo se movimenta melhor. Experimentarão um passeio de barco com direito a balanço do mar, som de gaivotas e vento no rosto. Também passarão por uma sala onde serão convidadas a deitar no chão e ouvir. Entregar-se à música, vozes e tambores. Saindo dali, o último estágio é um bar. Totalmente escuro, onde se pede suco ou guloseimas num balcão e se paga com moedas ou notas de 1 real.
Depois, todas sentam num sofá redondo e, instigadas por Tiago, contam o que sentiram. Elas adoraram. Querem saber mais sobre a vida do guia. Querem é vê-lo. “A gente quer te conhecer”, pedem. “Mas vocês já me conhecem. Assim como eu conheci vocês, não é mesmo?” “Ahnnn...”
O passeio termina. Por 17 reais (a inteira é 34), passaram 90 minutos no escuro. Parecem 30. Em uma salinha à meia-luz, preparam as pupilas para voltar ao mundo das imagens. Saem encantadas. “Aprendi minha lição”, se apressa em dizer Karine. “A falta de enxergar provoca pânico no começo, mas eu saí com outra visão”, diz.
“E acostumamos”, completa Gabriela Fróes, brasiliense de 14 anos, 1,77 metro e 50 quilos. “Tanto que, no final, a gente estava bem tranqüila”, conclui, e logo passa a falar do guia: “Eu acho que ele é bonito”. “Tanto por fora quanto por dentro”, enfeita Karine. “Se eu imagino alguém, imagino sempre bonito”, acrescenta Siluê Hoffmeister, gaúcha de Novo Hamburgo, 15 anos, 1,74 metro e 49 quilos.
O modelo gaúcho Ricardo Fischer, de 19 anos, 1,90 metro e 83 quilos, fala da experiência: “O barco é muito real, entrei no clima. Eu queria sentir tudo, tocar tudo”.
As reações deliciam o francês radicado no Brasil Bernard Kaplan, responsável pela implantação do Diálogo no Escuro no País. “Você abre os olhos ao fechá-los. Este projeto é um convite para conhecer a beleza invisível”, enaltece.
Todos do grupo passaram pelo museu e agora aproveitam para tirar fotos, posar, brincar. De tanto insistir, as modelos conseguem fazer com que os guias venham para a luz. Tiago é, então, rodeado pelas garotas que conduziu no escuro. Há uma certa intimidade, e também algum estranhamento. Baixinho perto delas, ele não deixa barato: “Eu ia convidar vocês pra comer um Big Mac aí no shopping, mas vocês só comem alface e água, né?” Ele ri, elas riem. No sábado 27, uma das garotas vencerá o concurso de modelos. Todas foram contratadas pela agência e seguirão sendo vistas, fotografadas, admiradas. Poucos, no entanto, captarão uma imagem delas como Tiago.
Postado por Phydia de Athayde às 11:31 3 comentários