(o texto abaixo foi publicado na CartaCapital em 29 de agosto desse ano, edição 459. Acho legal reproduzir aqui para dar uma nova chance dessa história circular. E pra dividir com mais gente esse jeito diferente de ver relações tão simples, e complexas, como a que existe entre cães e donos)
A encantadora de cães
Twister, Thunder, Maria, Max e Kika são os clientes do dia. Twister é um boxer que domina o quintal de casa. Quando os donos ousam invadir seu território, pula, baba, empurra, faz o diabo. O pastor de Shetland Thunder é o rei do apartamento. Dá chilique, morde e late quando a dona ousa ir ao banheiro ou tentar sair de casa sem ele. Maria, uma vira-lata, só faz o que quer, morde o bumbum da dona, pula, e ainda ganha mil carinhos.
São cachorros muito amados, sem dúvida. Mas quem manda em quem? Essa é uma das perguntas que os donos, os verdadeiros clientes de Karin Stefanie, precisam responder. Karin é cinóloga comportamentalista. Significa que entende tudo de cachorro e, por extensão, de donos de cachorro. Karin reverte as situações descritas acima, e mesmo outras mais graves como cães que se autoflagelam ou são agressivos, com um diferencial surpreendente: nunca bate nos animais, nunca os repreende. Eles obedecem por convicção. Mas tal milagre só acontece quando fica claro quem manda no pedaço.
“Você só domina o cachorro se falar a língua dele. Cães ainda acham que são lobos, por isso é preciso mostrar quem é o líder da matilha”, explica Karin, paulistana de pai austríaco e mãe baronesa de Ibirocahy, que rejeitou a vida de “rainhazinha” para se dedicar à paixão pelos animais. Ruiva, cabelos ondulados e compridos, altíssima, 1,90 metro, ela se dobra toda e estabelece sintonia imediata com qualquer cachorro. É uma líder nata de matilha, digamos assim. E ganha a vida ensinando donos de cães a voltarem a ser donos.
TWISTER
TWISTER
No quintal do boxer Twister, a aula é com Henrique e Gabriela, irmãos em idade escolar. Uma primeira sessão, mais longa, com a família toda, aconteceu há uma semana. A lição número 1 do dia é entrar no quintal sem olhar nos olhos do cachorro. Em linguagem canina, evitar contato visual imediato significa superioridade. É quase impossível no começo, mas as crianças já conseguem. Twister fica louco, pula e late, como se dissesse: “Como assim, não estão me vendo?”
A orientação é afastá-lo com as mãos e ignorá-lo até que se acalme. Funciona.
Na implantação do método, Karin usa petiscos caninos (biscoitos ou “bifinhos”) como ferramenta de persuasão. O cão só ganha se tiver o comportamento correto. Se errar, é ignorado. A alternância entre indiferença e prêmio dá resultado. Sem gritos, sem violência. Twister passa a obedecer. Anda junto, dá a pata, deita... A cada acerto, um biscoito. A cada erro, a indiferença e uma nova chance mais tarde. Twister é malandro, às vezes dá a pata sem ninguém ter pedido. Não ganha petisco.
Na implantação do método, Karin usa petiscos caninos (biscoitos ou “bifinhos”) como ferramenta de persuasão. O cão só ganha se tiver o comportamento correto. Se errar, é ignorado. A alternância entre indiferença e prêmio dá resultado. Sem gritos, sem violência. Twister passa a obedecer. Anda junto, dá a pata, deita... A cada acerto, um biscoito. A cada erro, a indiferença e uma nova chance mais tarde. Twister é malandro, às vezes dá a pata sem ninguém ter pedido. Não ganha petisco.
“Um bom líder é paciente, não precisa se impor por meio de violência. Um bom líder não duvida do próprio poder, não se afirma pelo medo. Um bom líder é o que não perde a cabeça quando todos perdem.” Não, não é auto-ajuda, é apenas Karin traduzindo o óbvio. E vai além: “O cão até relaxa quando percebe que não precisa cuidar de tudo. Ninguém quer ser líder. Alguém quer ser síndico? O animal aceita muito melhor uma mudança de comportamento. Transformar o dono é bem mais difícil”.
THUNDER
THUNDER
Duas horas depois, Karin está no apartamento de Thunder, quer dizer, da psicóloga Marisa Nasralla. “Pode colocar aí que ele é uma gracinha”, diz a dona. Até uma semana atrás, Thunder dormia na cama de Marisa, que mora sozinha. Perdeu o posto. “Ele foi muito mimado. Eram 24 horas por dia de atenção só para ele. Ele chora e late quando tenho de ler. Acho que se não desse tanta importância, ele não latiria tanto”, percebe a psicóloga.
Ao chegar, Karin não olha Thunder nos olhos. Ouve o relato dos avanços e problemas da última semana e passa orientações a Marisa. Sentada no sofá, a dona muitas vezes desvia o olhar para o cão, que percebe e faz de tudo para desconcentrá-la. Quando Thunder não está mais pedindo atenção, Karin olha para ele e o chama. Hipnotizado, vem na hora e recebe afagos. “O problema não é mimar o cachorro, é a hora do mimo. Cachorro não precisa de dó. Não existe dó na natureza”, ensina.
Karin adestra cães há 25 anos. Já trabalhou com os métodos mais comuns, que usam violência e repressão, mas intuitivamente deixou-os de lado. Há dois anos conheceu o trabalho da inglesa Jan Fennell, autora de The Dog Listener, livro inédito no Brasil, e encontrou-se. O que fazia por bom senso agora tinha uma didática descrita.
Na prática, consiste em mostrar a Thunder que Marisa é quem manda durante o passeio até a padaria. Marisa é orientada a não deixar Thunder, nunca, mais adiantado que ela na calçada. “O líder é que vai na frente”, professa Karin. Marisa encurta a guia, Thunder obedece e fica ao lado dela. Pára de puxar a dona para cima e para baixo, como sempre fez.
MARIA
MARIA
Depois, é hora de visitar Maria, a vira-lata filhotona que dobra as donas feito papel de seda. Dessa vez, Karin dá instruções também para a faxineira. Antônia Francisco Borges, a Tonha, tem de aprender a não entrar em casa e imediatamente se abaixar para cumprimentar Maria. “Mas é que ela é uma graça”, derrama-se a faxineira. Sentadas no sofá, sem dar atenção à cadela, Karin passa orientações a Tonha e à professora Vera Helena Gamberini. A dona admite a dificuldade de ignorar Maria: “Ela percebe tudo, mesmo se eu olhar de rabo de olho”.
Quando Maria finalmente desiste de chamar a atenção, Karin a chama, faz carinho e tenta colocar a guia. A vira-lata agita-se toda, morde a guia, pula, mordisca a mão de Karin. Errado. A guia é retirada e a cadela faz cara de desespero. Vira-se para Vera como quem diz: “Viu isso? Não vai fazer nada?” A dona controla-se e nem a olha nos olhos. Um tempo depois, Maria tem nova chance. Melhora um pouco, mas continua descontrolada. Perde as três chances de passear. Passa-se a um outro exercício.
Karin hipnotiza Maria com o cheiro do petisco e a faz andar ao seu lado, sem guia, num percurso imaginário pela sala. Depois, é a vez de Vera. A dona tem mais dificuldade, e com ela Maria faz mais manha, mas os progressos aparecem na hora. “Essa é a segunda aula. Acho que a Maria vai ficar mais educadinha e feliz. Tudo começa com a nossa reeducação”, diz a dona.
Karin segue atrás de clientes por toda São Paulo com uma Parati vermelha 1986. O trabalho holístico com cachorros e donos opera pequenos milagres. Completamente apaixonada por animais, ela lamenta as atitudes da indústria que produz rações coloridas, “um veneno”, de criadores que multiplicam cães problemáticos apenas pelo lucro, de donos que transformam cachorros como os pit bulls em “uma extensão de seu corpo e sua masculinidade”. “O cão não nasce ruim. A culpa dos problemas, infelizmente, é do homem”, ensina esta encantadora de cachorros. E de seres humanos.
Um comentário:
algo me diz que a Maria é a mais fofa das criaturas caninas mostradas na linda crônica....
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