terça-feira, 6 de novembro de 2007

Ensaio sobre a cegueira

Essa crônica saiu na CartaCapital de 31 de outubro, edição 468. (Ainda vou aprender a botar o link bonitinho, direto no nome www.cartacapital.com.br, mas tá valendo.) Foi muito, muito legal viver a cegueira. Uma experiência tão rica que me fez desejar que todo mundo passasse por ela. Bão, chega de conversa:

Ensaio sobre a cegueira

por Phydia de Athayde

Elas são lindas. Mais do que isso. São lindas selecionadas. Lindas dentro de um padrão que exige pelo menos 1,72 metro de altura e 14 anos completos. Pesam, em média, 50 quilinhos. Deixaram para trás 79.975 aspirantes a top model e são finalistas do Elite Model Look 2007, o concurso da agência de modelos que revelou Gisele Bündchen. Um dia, Bündchen teve 14 anos e participou das mesmas seletivas que elas passam hoje. Tudo igualzinho, não fosse uma novidade recém-implantada na preparação das finalistas.

A novidade nada tem a ver com a capacidade vital da modelo sair bem em fotos. Ao contrário. Elas, as lindas, estão prestes a ser privadas do sentido que mais usam, e do sentido que devem despertar no mundo para ter sucesso na profissão. A visão.

As 20 meninas e os cinco rapazes finalistas do concurso de modelos saem do hotel na zona sul paulistana, onde estão concentrados, e são levados, de ônibus, até Campinas. Na cidade a 90 quilômetros da capital paulista fica a única sede permanente do museu Diálogo no Escuro da América Latina (há outras cinco na Europa e uma em Israel, além de exposições temporárias pelo mundo). É curioso chamar de museu um local aonde se vai para não ver nada. A idéia é exatamente não enxergar. Percorrer um trajeto por ambientes tão diferentes quanto uma floresta, uma cidade ou um barco, na escuridão total. Nem um pingo de luz.

Dentro do ônibus, a modelo Karine Marschall, gaúcha de Nova Hartz, 14 anos, 1,76 metro e 52 quilos, mata o tempo olhando-se no pequeno espelho que traz na bolsa. Mira os olhos azuis, o nariz perfeito, a boca desenhada. Quer viver disso, da imagem que confere em silêncio e por longos minutos, como perdida na contemplação do belo.

Duas horas depois, saem do ônibus correndo para não estragar a escova na garoa e chegam à entrada do museu, no Galeria Shopping campineiro. Diante delas, apenas uma parede vermelha com uma porta corrediça.

Um grupo de oito é formado e entra numa ante-sala, à meia-luz. Soltando gritinhos de nervoso, as jovens modelos recebem uma bengala de alumínio (igual àquela usada por cegos) e uma recepcionista dá instruções básicas. A pouca luz se esvai completamente. Fica o breu. Somem os rostos harmoniosos, os cabelos sedosos, os sorrisos treinados para agradar. Ficam as vozes estridentes. “Ai, quem está aí?”, “Ai, ai, aiii”, “Gente, cadê?”

Aparece Tiago. “Oi meninas, eu sou o Tiago, vou guiar vocês pelo passeio, tá legal?” Ele pergunta os nomes de cada uma e explica que é preciso falar sempre. No escuro, quem não fala é invisível. Tiago, assim como todos os guias do museu, é deficiente visual. A intimidade com a falta de visão é o melhor guia para quem nunca se sentiu cego. No escuro, a única referência é a voz de Tiago. Os gritinhos demoram a cessar. É difícil aceitar que não há o que ser visto. Ninguém sabe o que está à sua frente.

As meninas caminham rentes a uma parede acarpetada. Logo ouvem o som de passarinhos, de água corrente. Ao poucos, se soltam da parede. O corpo estranha ao pisar um chão irregular. Mais gritinhos. “Calma, venham para cá, seguindo a minha voz”, diz Tiago. Com a segurança só possível a quem tem intimidade com o escuro, ele mostra a floresta. A textura das folhas, a aspereza de um tronco. Encontrar uma árvore no escuro, senti-la, ligar o que se sente à imagem que se tem de uma árvore é enxergá-la como nunca.

Logo as mãos sentem uma parede de pedra por onde escorre água. “O que é isso?”, pergunta Tiago. “Uma cachoeira!”, responde uma voz, encantada. Não é bem uma cachoeira. Enxergar no escuro não é fácil.

Os olhos teimam em ficar abertos. Tiago diz que é melhor fechar, para não dilatar demais a pupila. Não adianta. Algo instintivo os mantém escancarados, sedentos por uma luz que não vem. Lacrimejam, então fecham um pouco.

Saindo da floresta, poucos passos e, de repente, uma buzinada alta e o ronco de um motor aterrorizam, congelam todo o grupo. Parece um monstro, mas é só a cidade. Muro de tijolo, portão de grade, calçada, tudo é novo. O latido de um cachorro assusta e todas gritam. Em seguida, Tiago mostra às meninas que há um degrau: é o desnível entre a calçada e a rua. Elas sentem o degrau com as bengalas. Então, num movimento coordenado e de muita destreza, esperam o som da freada de um carro para, só depois, atravessarem a rua.

O medo do escuro vai dando espaço para outra coisa. Já quase não há gritos e o grupo se movimenta melhor. Experimentarão um passeio de barco com direito a balanço do mar, som de gaivotas e vento no rosto. Também passarão por uma sala onde serão convidadas a deitar no chão e ouvir. Entregar-se à música, vozes e tambores. Saindo dali, o último estágio é um bar. Totalmente escuro, onde se pede suco ou guloseimas num balcão e se paga com moedas ou notas de 1 real.

Depois, todas sentam num sofá redondo e, instigadas por Tiago, contam o que sentiram. Elas adoraram. Querem saber mais sobre a vida do guia. Querem é vê-lo. “A gente quer te conhecer”, pedem. “Mas vocês já me conhecem. Assim como eu conheci vocês, não é mesmo?” “Ahnnn...”

O passeio termina. Por 17 reais (a inteira é 34), passaram 90 minutos no escuro. Parecem 30. Em uma salinha à meia-luz, preparam as pupilas para voltar ao mundo das imagens. Saem encantadas. “Aprendi minha lição”, se apressa em dizer Karine. “A falta de enxergar provoca pânico no começo, mas eu saí com outra visão”, diz.

“E acostumamos”, completa Gabriela Fróes, brasiliense de 14 anos, 1,77 metro e 50 quilos. “Tanto que, no final, a gente estava bem tranqüila”, conclui, e logo passa a falar do guia: “Eu acho que ele é bonito”. “Tanto por fora quanto por dentro”, enfeita Karine. “Se eu imagino alguém, imagino sempre bonito”, acrescenta Siluê Hoffmeister, gaúcha de Novo Hamburgo, 15 anos, 1,74 metro e 49 quilos.

O modelo gaúcho Ricardo Fischer, de 19 anos, 1,90 metro e 83 quilos, fala da experiência: “O barco é muito real, entrei no clima. Eu queria sentir tudo, tocar tudo”.

As reações deliciam o francês radicado no Brasil Bernard Kaplan, responsável pela implantação do Diálogo no Escuro no País. “Você abre os olhos ao fechá-los. Este projeto é um convite para conhecer a beleza invisível”, enaltece.

Todos do grupo passaram pelo museu e agora aproveitam para tirar fotos, posar, brincar. De tanto insistir, as modelos conseguem fazer com que os guias venham para a luz. Tiago é, então, rodeado pelas garotas que conduziu no escuro. Há uma certa intimidade, e também algum estranhamento. Baixinho perto delas, ele não deixa barato: “Eu ia convidar vocês pra comer um Big Mac aí no shopping, mas vocês só comem alface e água, né?” Ele ri, elas riem. No sábado 27, uma das garotas vencerá o concurso de modelos. Todas foram contratadas pela agência e seguirão sendo vistas, fotografadas, admiradas. Poucos, no entanto, captarão uma imagem delas como Tiago.

3 comentários:

Adriana La Cerva disse...

Que lindo esse texto e essa experiência!

Um inimigo do povo disse...

Ouso acrescentar um poema do Silas Corrêa Leite (furtado do Programa Provocações do Abujamra na TV Cultura):

"Cego

Cego de nascença, aprendeu a ler no escuro. Desde pequeno, os livros lhe eram abertos, os toques lhe fundavam janelas, os sons lhe eram caminhos de pedra.

Um dia, achou um doador de córnea e pensou que os recursos adquiridos poderiam lhe render a visão total.

Não aceitou ser operado por conta do governo, nem enxergar no claro. Ficou com medo de se olhar no espelho das pessoas e ter medo da escuridão que havia nelas."

Anônimo disse...

MUITO BOA A MATERIA.
VOCÊ É BONITA E INTELIGENTE.
SUAS REPORTAGENS SÃO ÓTIMAS.VISITO SEMPRE SEU BLOG.