(publiquei esse texto na edição 439 da CartaCapital, de 11/04/07. ...É sobre uma dessas pessoas que dá gosto conhecer. Que nos fazem repensar coisas básicas da vida. Como o tempo)
Minutos de sabedoria
por Phydia de Athayde
16h35. De fora, não se diz o que é. A porta espremida entre o 2.892 e o 2.890 da rua Augusta, cercada por samambaias, jibóias e orquídeas, faz pensar em floricultura. Um passo à frente e as plantas cedem espaço a uma variedade de relógios pregados na parede esquerda. Clássicos, modernos, kitsch, todos meio empoeirados. Também não é uma loja. Outro passo e, ao fundo, um senhor sentado em frente a uma mesa de ourives tirará a lupa de encaixe do olho direito e erguerá o rosto para ver quem chega. Lin Chun Long, de 54 anos, o relojoeiro mais tradicional do bairro.
16h43. Além dele, dois senhores, uma senhora e um cachorro. Pierre, o jack russell terrier, fuça os vasos de plantas. O dono, o tarólogo e terapeuta energético Teruo Yamada, 42 anos, acaba de trazer um café para o senhor Lin. “Carioca e sem açúcar, do jeito que ele gosta.” Teruo conhece Lin há mais de uma década, quando sua loja ficava na Galeria Ouro Fino, mais acima na mesma rua. “Somos amigos, é um encontro de almas”, orgulha-se. “Ele resolve tudo. Hoje eu vim para acertar meus relógios digitais.” Todos os dias, o dia todo, as duas cadeiras e os dois banquinhos ao lado da mesa estão ocupados por clientes. Muitos, como Teruo, tornaram-se amigos. Passam para conversar, dar um “oi”, oferecer um café ou uma água. E até trazer relógios.
16h54. Maria Sena, copeira da joalheria H.Stern, está de saída. Ela leva de volta o relógio de uma cliente e ganha um beijo de Lin. Ele trata a todos pelo nome, que sabe de cor. Centenas. Quando saiu de Taiwan aos 25 anos, falava apenas mandarim.
17h11. Uma senhora elegante, óculos de lentes azul-claras, acaba de entrar. Dona Fany anuncia o que trouxe, uma pulseira-relógio e “aquele ancião”, o Seiko que usa há duas décadas. Enquanto Lin habilmente troca as baterias, eles mantêm um diálogo tranqüilo, de velhos amigos:
– Tudo bem com a senhora?
– Graças a Deus, por enquanto estamos conseguindo andar.
– A gente precisa de tão pouquinho...
– ...para ser feliz.
– É isso. Quanto mais simples, melhor. ...Que horas o alarme? Seis?
– Seis e meia.
17h21. Relógio acertado. Doze reais. Antes de partir, dona Fany abre um sorriso ao falar do amigo: “Ele vai viver uns 300 anos, é a pessoa mais tranqüila que conheço”. Pouco depois, o próprio dá um exemplo de como ser zen. Lin aponta a entrada da loja, sem nenhuma placa indicativa, e explica, com sotaque que 28 anos de Brasil não tiraram:
– Fiz de propósito. Essa fachada é antiestresse. Esse é o volume que dou conta, só dos amigos. Senão, não dá conta.
17h44. Mal termina a frase, atende o telefone: “Hai!” Enquanto conversa com uma das filhas, em mandarim, arruma o troco para outra cliente. Além de uma nota de dez, devolve um real em moedas cuidadosamente acomodadas em um minúsculo saquinho plástico.
17h46. Lin sabe a localização exata de todos os itens que superlotam a pequena mesa de trabalho. “Quem magoar o Lin vai se ver comigo”, diz um bilhete colado à luminária. Enquanto conversa, não precisa de mais de cinco segundos para achar uma correia, uma bateria, um pino. Nunca perde de vista quem entra ou sai da loja. Um rapaz o cumprimenta: “Beleza?”, “Pura”, ele responde. Além de tratar a todos pelo nome, sempre sabe o que cada um veio buscar.
18h01. Em outro raro intervalo, Lin retoma a conversa. Aos 22 anos, depois de servir no exército, decidiu deixar Taiwan para “aventurar-se no mundo”. Ao comunicar ao pai a decisão, ouviu a frase que determinaria seu futuro: “Se você quer partir, tem de aprender uma profissão que caiba numa maleta”.
O jovem vagou pelas ruas de Taiwan até encontrar no ofício de relojoeiro os quesitos “mínima ferramenta, mínimo espaço” de que precisava. Passou três anos como aprendiz. Trabalhou em troca do almoço, até dominar a técnica. Estava pronto. Porém, um mês antes do embarque, por artimanha do destino, apaixonou-se.
“Eu sou maluco, viu?”, avisa antes de prosseguir. De malas prontas, tomou coragem e pediu a mão da esposa, cujo nome brasileiro é Suzana. Noivo, partiu para o mundo. Passou alguns meses no Japão e no Canadá, e chegou a Buenos Aires em 1978. A futura mulher o encontraria seis meses depois. “Só namorei depois do casamento”, conta ele.
Na capital portenha, Lin “hablava mucho” castelhano, mas confessa que sofria por não se comunicar direito. Outro problema era a economia, de inflação galopante, que prejudicava o negócio dele e da irmã. Relógios, ela no balcão, ele na assistência técnica. O ofício de relojoeiro, ao contrário das línguas e das economias, é perene. “Muda só design, técnica é a mesma”, diz.
Sem planos anteriores, veio parar em São Paulo. Um grupo de chineses viajaria ao Brasil e um casal havia desistido. Lin e a esposa ficaram com as vagas. Desembarcaram na Liberdade, tradicional reduto oriental na capital paulista. “Gostei. Achei o povo mais simpático, a colônia era grande, a economia boa. Voltei a Buenos Aires, arrumei tudo e em uma semana estava aqui.”
Lin instalou-se na Liberdade e começou a freqüentar aulas noturnas de português. De dia, dividia com um conterrâneo o espaço na Galeria Ouro Fino, na Augusta. No Brasil nasceram as duas filhas, Juliana e Luana, cuja foto ele exibe na parede da loja. Anos depois, Lin trocou o bairro da Liberdade e foi morar na Saúde, movimento feito por muitos imigrantes orientais. Nunca saiu da rua Augusta.
18h38. Cai a tarde. O movimento, enfim, arrefece. Em um espaço de apenas duas horas, 14 clientes procuraram mister Lin. Outros tantos, da calçada, acenaram para ele. Todos saíram com um sorriso, muitos com um relógio consertado, embora esta não fosse a principal razão da visita.
18h43. Já é hora de fechar? Mais uma surpresa, ou melhor, uma lição:
– Eu não tenho hora para nada. Eu nem uso relógio. Meu trabalho é funcionar relógio. Eu não vivo em função de relógio.
19h41. É noite, a lojinha de Lin está fechada. Sobre a porta de aço, uma imagem pintada. Em um fundo alaranjado, um bonequinho de chapéu chinês faz um “t” com as mãos. Abaixo, lê-se a mensagem de Lin para o mundo: “Dá um tempo”.
terça-feira, 13 de novembro de 2007
Minutos de sabedoria
Postado por Phydia de Athayde às 15:10
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Um comentário:
A cada texto seu existe um movimento de formiguinha que aflora no meu interior e de alguma forma me desperta. Me desperta a "ver" a pracinha, o condomínio fechado, a cegueira...por que é simples assim.
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