quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

moradia popular

...O surgimento (rápido) de uma parte da favela Real Parque e a desocupação feita pela polícia, que causou um congestionamento monstro e - muito por isso - foi notícia esta semana são dois lados de uma mesma história. E que costuma ser mal contada. Tem o oportunismo de quem ergue barracos de olho na indenização paga pela prefeitura, tem o problema sério (e real) da falta de moradia no País, tem a truculência da polícia, tem a maneira simplista como a tevê costuma resumir a história... E por aí vai. É complicado entender o problema sem ao menos tentar saber a que mais ele está ligado. Cidade, política, gente, grana, especulação, malandragens lá e cá, boas intenções, más gestões, enfim.

Talvez para ajudar, embora também não seja uma análise completa, tem um texto que eu fiz pra edição de 05/12 da CartaCapital. Fala sobre a falta moradia no país e do que pode ser feito pelo governo federal a respeito (além do que já está sendo feito, pelo menos na parte de organizar o rolo todo...).

por Phydia de Athayde - com a colaboração da Eliane Scardovelli

“Lá não tem favela como aqui, os barracos são feitos de palha de babaçu”, explica Bismarque Roberto de Sousa Miranda, maranhense que vive em Tocantins. Ele coordena o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e está em Brasília para a 3ª Conferência Nacional das Cidades. Na bagagem, a constatação de que nem a mais jovem capital brasileira, Palmas (de 1989), escapa de problemas comuns às grandes metrópoles. “A classe trabalhadora mora em cortiços na periferia enquanto a elite mora no centro. O próprio estado criou um bairro para moradia popular, mas fica distante 30 quilômetros”, diz e crava: “A cidade foi planejada para excluir”.

Miranda e outros quase 3 mil participantes da conferência, que aconteceu entre 25 e 29 deste mês, acreditam ser possível transformar a realidade urbana, e que isso só é acontecerá com participação da sociedade.

Na edição anterior da conferência, em 2005, o presidente Lula não compareceu. Desta vez, foi recebido com aplausos na cerimônia de abertura e fez um discurso afinado com as expectativas do público, formado em boa parte por representantes de movimentos sociais.

Lula disse esperar “um dia acordar e não ter mais palafitas no País”. Agradeceu a presença dos representantes de conselhos municipais e destacou que conferências anteriores resultaram em projetos e, depois, em leis. Como exemplo de ação conjunta entre governo e movimentos sociais, o presidente mencionou a aprovação do marco regulatório do saneamento básico.

Lula também se disse favorável ao aproveitamento de prédios públicos vazios para moradia. Estima-se que existam, no Brasil, 6,7 milhões de domicílios vagos, 5 milhões deles localizados em área urbana, e uma parcela ainda não calculada pertencente à União.

Hoje, mais da 80% da população brasileira vive em área urbana. Ou tenta viver, já que milhões não têm onde morar, ou amontoam-se em favelas e similares. A medição mais recente, do IBGE com dados de 2005, indica que faltam 7,9 milhões de moradias no País (tabela ao lado). Outra pesquisa, ainda inédita, do Centro de Estudos da Metrópole, descobriu que há mais de 12,5 milhões de brasileiros – o dobro do apontado pelo IBGE – vivendo em locais precários, carentes socialmente e sem infra-estrutura adequada.

A Conferência Nacional das Cidades é importante porque, além de discutir questões técnicas e legais, é uma iniciativa governamental para fazer surgir um modelo de desenvolvimento urbano que incorpore participação social. A instância criada para isso é o Conselho das Cidades, formado por 86 representantes da sociedade civil organizada e das três esferas de governo.

Quase um terço dos participantes da conferência são ligados ao Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), referência no assunto por representar os principais movimentos sociais nacionais, diversas ONGs, entidades profissionais e instituições de pesquisa ligadas ao tema.

Benedito Roberto Barbosa, o Dito, é dirigente nacional da Central de Movimentos Populares (ligada ao FNRU) e está feliz com as conquistas em Brasília, resultado de 3.175 conferências locais realizadas durante o ano. “Agora é o momento de descer para a prática”, diz. “Cria-se uma expectativa muito grande. Mas, entre a decisão política e a efetivação o processo, tudo é muito lento, sem falar dos conflitos entre governos”.

Uma antiga reivindicação foi atendida já na abertura da conferência, com a sanção da Medida Provisória 387 pelo presidente Lula. Entre outros itens, a MP dá acesso para associações comunitárias e cooperativas ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). A sanção é um momento histórico para os movimentos sociais, pois partiu deles, nos idos de 1992, o projeto de lei de iniciativa popular que criou o Fundo e também o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, em 2005.

Do total de 1 bilhão de reais do Fundo, um décimo (100 milhões de reais) será destinado às associações e cooperativas, com critérios como a experiência na produção da moradia e a aprovação do projeto pelo Ministério. Os restantes 900 milhões de reais irão para projetos de estados e municípios, sendo 450 milhões para construção de moradias, 400 milhões para urbanização de assentamentos precários, 20 milhões para assistência técnica e 30 milhões para elaboração de planos habitacionais, de acordo com o Ministério das Cidades.

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) tem medidas para as áreas de saneamento e habitação e também é visto como uma conquista. Márcio Fortes estima cerca de 150 bilhões de reais a serem liberados nos próximos quatro anos. O governo também lançará o PAC da Mobilidade Urbana, para investimentos em transporte público.

A sanção da MP 387, a destinação de investimentos federais para o desenvolvimento urbano, o compromisso de destinação de imóveis da União para moradia popular e a aprovação da resolução que cria o Programa Nacional de Construção e Moradia são as principais “vitórias” da conferência, de acordo com a secretária-executiva do FNRU, Regina Ferreira. “São grandes conquistas, resultado de um processo longo, iniciado há mais de 20 anos”, diz.

“Conseguimos aprovar as principais diretrizes de construção de um sistema de desenvolvimento urbano. São meios de integrar as políticas setoriais, as três esferas de governo e ainda criar uma instância de controle social das políticas públicas”, explica Regina. “Saímos daqui com condições de apresentar o projeto de lei que vai instituir esse sistema”, diz, e ressalva: “A partir de agora, cobraremos permanentemente para que as resoluções da Conferência tenham efetividade, sejam implementadas”.

Em quase 30 anos de militância, Dito reconhece o momento histórico, mas enxerga um contra-senso: “Conseguimos um arcabouço institucional muito importante, mas vimos uma piora nas condições de vida, principalmente nas periferias. Na prática, ainda não conseguimos melhorar a vida do povo”.

A vila City Jaraguá, no extremo noroeste da capital paulista, é um exemplo de como os movimentos sociais podem atuar na questão da moradia. A história das 180 casas, construídas em esquema de mutirão e auto-gestão, começou em 1999. Foram três anos de reuniões até que o primeiro tijolo fosse colocado, com recursos do Fundo Municipal de Habitação. Elaine Rosa, da União Estadual por Moradia Popular (ligado ao FNRU), coordenou o mutirão e descreve:

“De início, desconfiam, acham que é mais uma enganação. Nós trabalhamos orientando e mediando conflitos. Conforme a construção se materializa, dá para ver a transformação das pessoas. Este é o grande contraponto, a mudança de postura”.

Outro exemplo fica no Brás, bairro paulistano repleto de galpões e indústrias desativadas. A fachada do número 76 da rua Joaquim Carlos parece a de um prédio residencial convencional. Mas não é. Basta reparar na mobília do hall, uma mistura de peças cedidas pelos moradores, e nos avisos colados nas paredes, a convocar para mutirões e rifas. O clima é de uma grande comunidade.

As 92 famílias que ali vivem são do movimento Unificação das Lutas de Cortiço (ULC), que integra a União Nacional por Moradia Popular e o FNRU. O edifício foi conquistado a duras penas, depois de seis anos de negociação. Em 1999, o proprietário vendeu o prédio – inviável por causa da alta inadimplência – para o Programa de Arrendamento Residencial, do governo federal. O imóvel ficou abandonado e degradado. Somente em 2006 saiu o contrato de arrendamento e uma reforma financiada pela Caixa Econômica Federal o transformou em um lugar habitável.

Não existe síndico. Maria Aparecida Pontes, a dona Cida, é da comissão criada para discutir assuntos do condomínio e comemora: “Por meio da auto-gestão, conseguimos reformular o sistema de telefonia e de segurança. Também conscientizamos os moradores para que reutilizem água e poupem energia. As conversas têm surtido efeito”.

A limpeza do prédio também é resultado de esforço coletivo. “Todo final de semana, os moradores se revezam para fazer faxina nos corredores. Realizaremos outro mutirão para limpar a caixa d'água e economizaremos 500 reais”, explica Cida, que é vice-coordenadora do ULC.

Os residentes pagam cerca de 208 reais mensais (valor mínimo), mais o condomínio, 120 reais. Em 15 anos, serão proprietários do imóvel. Os apartamentos têm de 40 a 57 metros quadrados de área e custam de 32 mil reais a 39,8 mil reais, metade do valor de mercado.

Grande parte dos moradores trabalha no centro e tem renda familiar média de 1.200 reais. Há domésticas, recém-formados, cabeleireiros, professores, funcionários públicos. Luís Bezerra Silvério mora com a esposa e duas filhas, e trabalha como segurança. “Morar perto do emprego é uma beleza. Além disso, o dinheiro do aluguel nunca mais volta. Aqui, serei dono do meu canto.” Karl Marx da Silva, que divide o apartamento com a mulher e a filha, cita outra vantagem de morar ali: “Participo das reuniões, faço parte de um conjunto. É muito diferente de quando eu pagava aluguel. Era cada um por si, não havia a noção de coletividade.”

Quer em um edifício residencial, quer em uma conferência nacional, o desafio de transformar idéias em realidade sempre se impõe. Nabil Bonduki, arquiteto e urbanista, ex-vereador paulistano e um dos que participou da concepção que resultou no Ministério das Cidades, avalia positivamente o encontro em Brasília. E enxerga um desafio bem-vindo, e imenso, pela frente: “Vamos ver a real capacidade do Conselho das Cidades de assumir o papel e viabilizar a integração entre as políticas e os ministérios”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Phy, muito legal esse texto. Não é preciso mais do que uma volta pela periferia das cidades brasileiras (principalmente das grandes) para sacar que habitação é um problema de proporções absurdas. E acho que, em relação ao tamanho e gravidade da questão, discute-se pouco na mídia as possíveis saídas. Parece que muita gente gente, incluindo aí governantes, já jogou a toalha. Entramos num clima "é isso aí mesmo, fazer o quê?" Uma pena. Acho que atrair pessoas para o campo seria parte da solução. Na Europa os tais subsídios agrícolas que o Brasil tanto critica (com razão, por um lado) são mantidos sobretudo por pressão política, claro, afinal quem acabar com eles não se elege mais nem para síndico de prédio. Mas tb porque os governos sabem que se as pessoas deixarem o campo e invadirem as cidades em massa, o problema ficaria ainda maior e mesmo gastos várias vezes superiores aos atuais subsídios talvez não arrumassem o auê. Seria uma tremenda desorganização da sociedade. Enfim, essa questão é das mais complexas -- e, por isso mesmo, exigiria muito mais discussão do que vejo atualmente. Parabéns por levantar a bola. Bjs