(Originalmente publicada no jornalBrasil Econômico de 10/04/2010. Esta entrevista é do início de abril. Em futebolês, uma pequena eternidade se passou, mas nem o Palmeiras escapou da urucubaca, nem Belluzzo deixou de ser seu presidente, e nem suas ideias francas e destoantes das da cartolagem em geral mudaram. Ainda bem. )
Aproveitando o calor desses telefonemas, qual é a posição do Palmeiras nas eleições?
O Clube dos 13 precisa de uma reforma estatutária. O clubes precisam de mais força e mais autonomia para negociar os direitos de TV. Não que não tenha havido progressos, mas sou partidário de uma negociação impessoal, sem corpo a corpo. Há um problema porque, frequentemente, se tenta misturar atribuições e competências da CBF, do Clube dos 13 e dos nossos clientes. Não se pode permitir que dirigentes misturem interesses pessoais e, mais que isso, fragilidades pessoais numa negociação como essa. Há um problema, e já disse ao Fábio (Koff, candidato à reeleição), que é o tempo grande que ele ficou na presidência, mas meu voto será pela manutenção da autonomia do Clube dos 13. Não se pode misturar as bolas.
Há um problema de conflito de interesses e de intromissão indevida de instituições que deveriam ser paralelas. Não posso concordar com isso. Não é pessoal, mas não posso. Agora mesmo,(ao telefone) alguém me sugeriu que barganhasse meu voto. Não vou. Não há a menor possibilidade. Se eu for barganhar voto, é melhor me atirar do décimo andar. Vou votar de acordo com o que acho mais correto para o futebol brasileiro. Há limite para tudo.
Uma coisa é saber como é, outra é conviver. Estar lá nessas situações traz um profundo desconforto pessoal. Às vezes tenho que tomar decisões incompatíveis com a cultura do meio, e isso traz muito dissabor. Como cultura do meio incluo a visão que a imprensa tem do futebol, uma das coisas mais pobres e ridículas que já vi.
Vou dar um exemplo. Frequentemente os politicamente corretos dizem que é preciso cuidar das finanças dos clubes. Concordo. Só que, no dia seguinte, o cara destaca que o Corinthians contratou 20 jogadores e, o Palmeiras, só 15. A coisa não bate. O futebol é um ambiente muito peculiar. Não estou me fazendo de vítima, mas, às vezes, acham que eu tenho o poder de mover certas coisas, e não tenho. Se não há uma instância coletiva de organização que obrigue os clubes a se comportarem financeiramente, você sofre pressão, é julgado por todos. Numa competição desenfreada, se não tiver um mínimo de regra, ruma-se para o desastre.
Isso vem pelo meu pai, que tinha ascendência italiana. A maioria dos descendentes era palmeirense. O Corinthians foi fundado por italianos também, o primeiro presidente se chamava (Miguel) Bataglia. A primeira palavra que eu falei foi “Palmeiras”, minha mãe é que diz. Aprendi a ler na Gazeta Esportiva, com a legenda das fotos.
Sempre, tirando o período do seminário (no Rio, dos 11 aos 16 anos). Nessa época, me lembro de um jogo, em 1958, em que o Palmeiras fez 4 a 0 depois de ter ficado 8 anos sem ganhar do Corinthians. Antes das 5 da manhã do outro dia, liguei para o meu pai para saber o placar. E de outro, os 7 a 6 do Santos no Palmeiras (recentemente recuperado em vídeo), aí meu pai que ligou para avisar da derrota. Eu sentia muita falta, ia ao Maracanã, mas não é a mesma coisa. A rivalidade entre São Paulo e Rio era enorme e os cariocas me enchiam tanto que eu ia torcer para os times paulistas (risos). Ia torcer para o Corinthians, para o São Paulo, e ficava chateado quando perdiam. Hoje isso jamais aconteceria.
(Pensativo) O torcedor do Palmeiras é muito exigente. Os mais jovens são mal acostumados. Podem até tolerar, mas não gostam de um time que não seja muito técnico, muito clássico. Isso por causa da história, das academias, do time de 59. O Palmeiras jamais ganhou um campeonato com um time mais ou menos. Em 76, talvez. O palmeirense é intolerante. A paciência acaba logo. Se acontece uma queda, o mundo desaba. Ano passado, o time teve uma decepção mas não um fracasso no Brasileiro, terminamos em quinto. Agora, este décimo primeiro no Paulista é um fracasso. Não tem explicação, tem é que tentar melhorar. Mas aquele quinto lugar provocou uma sensação enorme de perda e frustração na torcida. Não se compara com a do Fluminense, do Botafogo, que escaparam do rebaixamento e ficaram satisfeitíssimos. Claro, o Palmeiras não foi para a Libertadores, então deu esse baixo astral que atingiu o time e ainda está aí. Pegou os jogadores.
Há um grau de aleatoriedade no futebol, o acaso joga de maneira tão importante, que é muito difícil ter controle. Teve aquele gol do Obina anulado (contra o Fluminense no Maracanã) e muita gente diz que foi um divisor de águas. Fui ao vestiário e todos os jogadores estavam muito inseguros. Contra o Grêmio, a briga do Maurício e do Obina já era fruto de uma situação de tensão que desestruturou totalmente o time...
Mas, Belluzzo, aconteceu outro evento importante aí: as suas declarações sobre o Simon (chamou o árbitro, entre outros afagos, de “vigarista”, e foi suspenso por 130 dias). Como foi aquilo?
Eu estava realmente muito indignado porque o Simon cometeu um erro crasso. Claro que, na hora, dei declarações de torcedor de arquibancada. Arquibancada mesmo, aquela bem fuleira (risos). Mas quem jogou futebol, como eu joguei, na várzea, sabe que existem momentos de explosão. Como presidente do clube, eu não poderia ter dito aquilo. O problema é você ser torcedor e se enfiar no futebol, aí corre-se riscos... Conheço muita gente que fez coisas parecidas. O Alexandre Kalil, do Atlético (MG), é igual a mim. Ele até se exalta mais que eu.
O futebol se tornou uma das coisas mais expressivas da sociedade de massa. Então — e isso entra em conflito com a maneira como eu penso e me coloco no mundo — no futebol tudo é muito simplificado. Uma coisa nada sofisticada: “Pertenço ao grupamento de camisa verde e quero dar porrada no grupamento de camisa preto e branca”.
Percebi que contagiava muito, conflitava. Como dirigente, percebi que não posso me deixar levar. Depois que passei desse limite (com Simon) e depois daquele episódio da Mancha Verde, mas por outra razão. Ali eu estava brincando, colocaram na internet e virou outra coisa. Uma coisa agressiva, que não era. Era uma brincadeira em um recinto fechado, com caras que não eram palmeirenses, eram dirigentes de escola de samba. Isso mostra o grau de exposição que se sofre quando se é presidente. Para o bem e para o mal.
Não sei se estar lá é um erro. Levei até a Luiza, minha filha, a Marcia, minha empregada, era uma coisa familiar. Não estava me dirigindo a uma horda de guerreiros que atacariam os são-paulinos.É muito difícil dizer que foi um erro porque o ambiente era outro, outras circunstâncias. Para mim aquilo era uma festa. Estavam escolhendo o samba da escola, me convidaram, eu fui. É claro que houve uma dissonância cognitiva. O problema maior é que se põe qualquer coisa no YouTube.
Isso é conversa mole dele porque ele resolveu bater boca com a torcida organizada. No Palmeiras, salvo essa minha ida lá, não há nenhuma relação com a torcida organizada. Mas é preciso entender que a torcida organizada é um fenômeno ligado ao futebol. Não pode ter relações promíscuas nem troca de favores. Ignorar que existe torcida organizada e tratá-los simplesmente como marginais, marginaliza mais ainda as pessoas. Eu dialogo com todos os torcedores, desde que o diálogo seja em termos civilizados.
Os jogadores não são o mais difícil. Mais difícil é administrar as idiossincrasias, as vaidades das forças políticas do clube. É preciso paciência e saber que aquilo não tem muita razoabilidade. Não se pode partir do princípio que todos os homens sejam razoáveis. Descartes não tinha razão ao dizer que o bom senso era a coisa mais bem distribuída. No futebol isso é menos verdadeiro ainda.
Uma coisa complicada. Os interesses são, frequentemente, conflitantes. É preciso ter muito cuidado nessas relações, e entender isso como um aspecto constitutivo do futebol. O peso dos empresários é muito grande, aumentou com as mudanças da Lei Pelé, e os clubes ficaram numa condição de dependência. Isso é verdade para o Palmeiras, para o Corinthians, para o São Paulo. No caso da base do Palmeiras, os diretores tiveram um trabalho imenso para colocar as coisas em ordem, fazer uma limpeza, uma seleção.
O que mudou na sua vida pessoal depois de você se tornar presidente do clube?
Quer que eu te diga? Minha vida pessoal é um desastre (silêncio). Eu era uma pessoa sossegada, tranquila. Agora, vou te dizer: o pior dia da semana é o dia do jogo. Desde de manhã tem gente ligando, cobrando, perguntando. Fico ansioso para que o time não dê vexame. Me sinto responsável. É muito diferente assistir a um jogo como torcedor e como presidente do clube. Antes, se perdia eu xingava jogador, juiz, mas encerrava o assunto. Agora, devo explicações. A vitória não é alegria, é um alívio.
E na faculdade, o assunto também é sempre o mesmo?
Ah, os alunos vão com a camisa, os professores vêm reclamar do time. Depois de um certo tempo, o excesso de manifestações futebolísticas acaba cansando. É maçante. E, vamos combinar, a conversa sobre futebol tem limitações intelectuais graves (risos). Mas gosto de ver futebol, vejo quase tudo. Ontem vi todos os jogos. Vejo a Série A3, o Palmeiras tem bons jogadores na Série A3.
Ter se tornado presidente abalou sua amizade com o Juca (Kfouri)?
Não. Às vezes ele faz umas avaliações um pouco apressadas. Uma coisa é escrever uma crítica, outra é estar lá dentro e tomar certas decisões. Eu tenho uma boa relação com ele, ainda que frequentemente a gente não concorde. Tem certas coisas básicas em que a gente concorda. A diferença entre mim e o Juca é que eu sou filho de juiz e, ele, de promotor. Tenho o hábito de pesar, ponderar, e ele é mais incisivo. Uma diferença de formação básica.
Entreguei os envelopes para a polícia, que já concluiu que a mesma pessoa mandou as quatro cartas, de endereços diferentes. Os bilhetes foram escritos numa linguagem propositadamente errada, pseudo-popular, e a investigação eliminou hipóteses. A polícia acredita que haveria motivação política. Vários diretores da minha administração receberam cartas anônimas, todas muito ofensivas, e nem mostraram para os parentes. Quem mandou? É fruto do ambiente político do clube, como me disse o delegado.
Do ponto de vista pessoal, a reeleição é um custo muito elevado. Não fui candidato de mim mesmo. Quando o ex-presidente Della Monica tentou mudar o estatuto para prolongar o mandato e perdeu, veio aqui me pedir para ser candidato. Naquele momento, dei uma cochilada. Você sobrestima sua capacidade de resolver as coisas. Não era meu projeto de vida ser presidente. Faço na maior boa vontade, dedico a maior parte do meu tempo, mas...
De equívocos, há uma lista interminável. Mas arrependimento é para quando existe má-fé, e isso eu não tenho.
Se pudesse, teria investido na profissionalização mais rápida do clube. E, se tivesse pensado um pouco mais, talvez não teria trazido o Vagner Love. Além disso, esse cargo no Palmeiras acabou com a minha vida pessoal. Talvez não devesse ter feito isso.
Minha preocupação maior é com a arena e em deixar um time decente, disputando título. Estou muito preocupado com o time. Disputaremos três títulos, são três chances para melhorar o time. Mas o verdadeiro projeto do Palmeiras é a arena multiuso, para 42 mil pessoas. O projeto é da WTorre e estou empenhadíssimo para que a construção comece logo. Quero deixar um estádio moderníssimo, ultrafuncional e rentável. Não existe nada parecido no Brasil.
Claro que a gente gostaria de abrigar algum jogo, sobretudo da Itália. Mas já tem gente misturando as coisas, falando muito. Esse é um jogo que eu não quero jogar agora, 2014 é ano do centenário do Palmeiras, então há uma série de festividades. Temos projeto de construir um hotel no Centro de Treinamento que possa, por exemplo, abrigar a seleção italiana. Seria legal.
Deixo essa para o Dunga. É difícil dizer, depois de ter trabalhado tanto tempo com esse time, que perdeu pouquíssimo, ganhou os principais clássicos. Se eu der uma de torcedor, hoje, levaria o Ganso. Mas isso não é nenhum conselho para ele.
Faz tempo que não fazemos uma reunião dessas. Algumas aconteceram na sede do Banco do Brasil (em São Paulo), outras em Brasília. Ele chamava o Delfim (Netto) e a mim, porque tinha confiança na gente. As reuniões foram mais agudas durante a crise, mas o Brasil reagiu tão bem que escassearam, e agora é ano eleitoral. Mas a estratégia de enfrentamento da crise se deve basicamente ao presidente e ao Guido (Mantega), que é um cara low profile mas muito eficiente. E o Lula é aquele negócio: ele tem uma saudável desconfiança dos economistas, mas ouve. E vai sempre no ponto certo.
Keynes (economista) dizia que o conhecimento começa com uma boa intuição, e tem razão. O problema maior é o sujeito que tem boa formação e não tem intuição. Acontece muito em economia: o cara estuda anos mas não entende nada do que está ocorrendo. O Lula é o oposto (risos).
Não tinha nada a ver! O Palmeiras foi no final de 2008, começo de 2009. Já tinha dito ao presidente que, naquele momento, a troca não era favorável. Confessei ao Lula que não tinha a menor vontade. Tomei a decisão errada, né? Era muito mais fácil ser presidente do Banco Central do que do Palmeiras (risos). “Vai lá porque precisa”, e é nessas que você entra pelo cano.
O Brasil tem uma situação razoavelmente confortável. Um problema incomoda, que é o crescimento muito rápido no déficit em conta corrente. Uma vulnerabilidade da economia brasileira.
Com Serra ou com Dilma, a economia fica muito diferente?
Não. Eles veem a economia e as perspectivas de desenvolvimento mais ou menos da mesma maneira. O Serra é um fiscalista danado, a Dilma é uma administradora séria, compenetrada.
O Serra, além de palmeirense, é seu amigo. Como é essa relação?
Ele é amigo de muitos anos, diria que temos um grau de concordância muito grande em relação à política econômica.
Quanto você acha que o Brasil cresce esse ano?
Ich... Isso aí é adivinhação. Acho que vai crescer em torno de 5,5%.
A economia te ensinou algo aplicável ao futebol ou o futebol contribuiu em algo para você entender a economia?
A economia, as ciências do clima e o futebol têm em comum a imprevisibilidade, a incerteza absoluta. No futebol, o fator humano é muito mais agudo. De uma semana para outra, de um jogo para outro, ocorrem mudanças violentas. Uma oscilação muito pior que a de uma bolsa em momento de crise.
(Longo silêncio.) Vou repetir uma reflexão da filósofa americana Marta Nussbaum. O problema do mundo contemporâneo é que se vive de coisas muito curtas, episódicas, e a única maneira de encontrar um pouco de paz é ter relação com algo mais estável. Para mim, a coisa mais estável é esta minha biblioteca (aponta para os 13 mil volumes ao seu redor). Todas as manhãs, acordo cedo e leio meus livros, por umas duas horas, até começarem as reuniões.
MAKING OF:
Esta entrevista transcorreu numa fria e chuvosa segunda-feira, na residência de Belluzzo na capital paulista. Cercado por livros, e tendo ao fundo a enorme TV de onde assiste ao futebol, ele falou conosco com o mesmo didatismo e firmeza de opiniões que eu conhecia das reuniões de pauta da CartaCapital, onde trabalhei. Nessa época, é bem verdade que, quando o Palmeiras dava vexame no domingo, ele arrumava um jeito de faltar ou chegar atrasado. Desta vez, a bola ficou muito mais com ele do que conosco, mas não pude deixar de notar uma certa obsessão pelo meu Corinthians. Mais tarde, o repórter Gabriel Penna confirmou: “Foi um festival de cutucadinhas, lá e cá”
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